Resenha

Guaipeca

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Guaipeca Foto: Patrick Tedesco

Enquanto lança o single nas plataformas, Leandro Maia busca financiar a produção física em vinil do Guaipeca, seu quarto disco autoral

No horóscopo chinês, 2023 é o ano do “coelho da água”, mas no calendário Maia, meu mesmo, é o ano do cachorro Guaipeca, meu novo álbum com doze faixas: Guaipeca: uma ilusão autobiográfica.

Produzido por Luciano Mello, cantor e compositor radicado em Portugal que já trabalhou com artistas como Elza Soares, Caetano Velloso, Marina e Guto Leite, a faixa conta com a participação da atriz Maria Falkembach e do baterista Marcelo Callado. Eu classifico como um “punk-rock-de-galpão”, uma canção manifesto, com voz, violão, bateria e megafone.

Para quem não está ligado, guaipeca é cachorro vira-lata. Linda palavra de origem indígena tupi-guarani muito utilizada no sul do país para o “cachorro de rua”, “bicho solto”. No Dicionário de Porto-Alegrês, guaipeca é o “cachorro de raça qualquer, ou melhor, de raça indefinida. Mais raramente se usa para gente interiorana e bruta, não acostumada com a cidade”. Nas minhas andanças guaipecas, já me deparei com outros designativos semelhantes: “cusco”, também no RS; “bucica”, em Santa Catarina, para “cadelinha”, onde também é comum ouvir falarem “guapeca”, “guapequinha”, assim, sem o “i”. Na Costa Rica, país que está presente no disco, “guaipeca” é “zaguate”.


Foto: Patrick Tedesco

Pra mim, guaipeca traduz um pouco do filho de agricultor-sapateiro-bancário, de traços afro-bugres-pêlo-duro, casado com alemã-italiana mesclada de imigrantes. Acabei saindo branquelo. Caçula, com irmãos bem mais velhos. Temporão. Interiorano por excelência, numa família que viveu em muitas cidades do RS devido ao trabalho do pai e seu talento e paciência para girar pelas agências do antigo Banco Agrícola/Unibanco pelo Rio Grande do Sul afora. Seu Antonio Brasil, meu pai, tem 90 anos e é nascido no Guamirim, Fontoura Xavier, então distrito de Soledade. Dona Antonieta, minha mãe, de 85 anos, é nascida na volta da Esquina Bom Sucesso, Catuípe, então distrito de Ijuí. Ambos andaram por boa parte do interior do Grande do Sul após se conhecerem em Palmeira das Missões. Passaram com idas e vindas por lugares como Seberi, Gaurama, Viadutos, Butiá, Vacaria, Caxias, Bento Gonçalves e vieram para Porto Alegre em 1981, onde os filhos mais velhos fariam faculdade e sindicalismo, e o filho temporão, este que vos fala, nascido em Caxias dois anos antes, seria criado entre os bairros Medianeira, a Vila Cruzeiro e o Alto Teresópolis. A mudança da família para Porto Alegre obviamente ocorreu ao som de Kleiton e Kledir. Quando criança, achava muito estranho uma pessoa ter nascido e morar na mesma cidade ainda.

Conforme o memorável escritor fronteiriço Aldyr Schlee, em seu Dicionário da Cultura Pampeana Sul-Riograndense, o Guaipeca é um “cusco, cachorrinho, cachorro de pequeno tamanho e de raça indefinida” (Schlee, 2019, p. 493). Schlee é um dos homenageados do disco, ao lado do Barão de Itararé, do mestre Mbira Chartwell Dutiro, do calipsero Walter Ferguson, da sambista Dona Conceição e outros guaipecas.

Sempre tive uma identidade associada aos cachorros. Embora até prefira e admire os gatos. De certa forma, substituí o Fofo – cachorro da família tipo pequinês, mas bem vira-lata – que foi levado a outros parentes quando cheguei. Nada a ver. Recentemente, uma colega da universidade que canta comigo no Coral da UFPEL me revelou que meu apelido secreto entre suas colegas de departamento é “labrador humano”, numa referência carinhosa. Tudo a ver.

Foi no exterior, na Inglaterra, que minha guaipequice virou bandeira. Embora de pele branca e portador de todos os privilégios e vantagens estruturais que isto signifique no contexto brasileiro, nunca me conformei em simplesmente responder “branco” nos formulários, embora fosse o correto e indicado, em nosso caso. Eis que me deparei com um formulário – de tantos outros semelhantes que vieram a se repetir ao longo de minha estadia na Inglaterra:



Tabela de Preenchimento de Grupo Étnico. Formulário de Inscrição no Doutorado

Aquela indicação de “Latin American (Other Mixed Backgroud)”, latino-americano de outra origem mista – teve de ser redigida por mim, pois não havia esta opção para preencher originalmente. A planilha era muito louca. Pra mim, nunca teve diferença étnica significativa entre um inglês e um irlandês, por exemplo, parecendo tudo a mesma coisa. No fim das contas, a gente aprende e identifica, com este formulário, questões relacionadas à matriz colonial e imperialista britânica e a forma como lidam com isso hoje. Basicamente, são mencionados países que já integraram o Império Britânico em algum momento da história. O nome do formulário era “Equal Opportunities Monitoring Form”, possivelmente integrando políticas afirmativas e de diversidade étnica. Deparei-me com questões semelhantes em fichas de hospitais, atendimentos de saúde e até inscrição para cursos e clubes e em requisição de matrícula para meu filho na escola. Não se tratava mais apenas de um Guaipeca, vira-lata. Mas de um vira-latino.

A partir destas percepções, defini o Guaipeca como tema para o próximo trabalho, mesmo sem ter composto a canção ainda. Talvez não houvesse canção, apenas o título do disco, o conceito guarda-chuva. Tanto que compus a canção somente depois de já iniciar as gravações do filme, que seria “Guaipeca”, antes de ser “Paisagens”, alteração feita no roteiro em função da interrupção dos trabalhos de gravação em função da pandemia de Covid-19. Na verdade, o processo de gravação do filme com Juliano Ambrosini e Nando Rossa da Bumbá Produtora de Conteúdo, num Fusca 1972 rodando pelas periferias de Pelotas, é que me inspirou a compor a canção, já para o filme.

Mais tarde, já lançado o “Paisagens”, compus um poema intitulado “Negritodes” a partir de conversas e oficinas com Ronald Augusto, em meio ao processo de elaboração do Plano Municipal de Cultura de Pelotas, que me proporcionou uma imersão profunda nas mazelas ancestrais locais. Nos encontros com Ronald, pude exercitar a escrita poética, revisar e discutir criticamente todas as letras das canções do disco. Segue o Negritodes completo: 

Se foi o quadrado semiótico
Se foi o rizoma

.

Agora é pão-pão queijo-queijo
Olho por olho
Dente por dente
.

Em tempos de fascirracismo

.

É preciso ser binário
Necessário ser do contra
ser anti é necessário

.

Não basta não ser racista
Não basta não ser fascista
É preciso tomar o lado contrário 

.
Não basta não ser racista
Não basta não ser fascista
É preciso tomar o lado contrário
.
É todes contra todos
Negritodes contra branquitudo

.

É todes contra todos
Negritodes contra branquitudo
.
Acertando-se alvo
Desprivilegiar-se

.

A carne de Krenak
A pena de Kopenawa
Os lábios de Gonzalez
O Pulmão de Guajajara
O livro de Oliveira
O Sopro de Fanon
É preciso tomar lado
Fincando posição 

Guaipeca é uma canção, mas também um álbum composto de mais onze canções autorais, que serão lançadas a seguir (teremos uma entrevista e uma faixa exclusiva aqui na Parêntese, em breve). Dentre os parceiros compositores do disco, estão Jerônimo Jardim, Pablo Lanzoni e o próprio Ronald Augusto. As participações musicais envolvem Negrinho Martins, contrabaixista; Felipe Karam, violinista; Marcelo Callado, baterista; e Chartwell Dutiro, mestre Mbira do Zimbábue falecido em 2019. Chartwell foi meu colega de doutorado e parceiro do grupo Kusanganisa (com Nick Sorensen e Chris Blanden). Chartwell disse que não me via como branco, mas como Latino-Americano. Não identificava em mim a mesma branquitude dos ingleses e europeus que invadiram seu país e haviam proibido seu povo de tocar Mbira. 


Leandro Maia e Feijão, guaipeca do trapiche do Laranjal. Foto tirada por Nando Rossa, durante as filmagens de “Paisagens”, dirigido por Juliano Ambrosini e produzido pela Bumbá Produtora de Conteúdo, sediada na Vila Flores. O filme é um road-movie num fusca e pode ser visto em aqui.

Guaipeca é avatar, o alter ego, o duplo que escolhi para contar a minha “ilusão autobiográfica”, que se desenvolve em três eixos narrativos interligados: o amor, o humor e a política, através da crítica social e de costumes.

No disco e na canção, não se trata de louvar o complexo de vira-lata ironizado por Nelson Rodrigues, mas de celebrar a vira-latinice do sul global. Guaipeca não tem complexo de vira-lata. A vira-latinice guaipeca descoloniza, ao mesmo tempo em que problematiza identidades e estereótipos. Para o vira-latino, fronteiras não são barreiras ou divisórias, mas superfícies de contato. 

Guaipeca, a canção e o álbum composto de doze canções autorais que serão lançadas a seguir. Dentre os parceiros compositores do disco estão Jerônimo Jardim, Pablo Lanzoni e Ronald Augusto. As participações musicais apresentam Negrinho Martins, Felipe Karam, Marcelo Callado e Chartwell Dutiro, artista do Zimbábue falecido em 2019.

Na canção, mesclei a letra original da canção a um trecho do poema “Negritodes” – que foi objeto de trabalha em oficina com o poeta e escritor Ronald Augusto, o qual também assina a parceria da faixa “quem já viu”, próximo single a ser lançado. O poema é invocado a plenos pulmões pela atriz e bailarina Maria Falkembach, por sinal minha companheira.


Foto: Patrick Tedesco

Para confeccionar o álbum físico, divulgar o trabalho e distribuir o Vinil, lancei uma campanha de financiamento coletivo pela plataforma Catarse, através deste link.

Lá, é possível conhecer mais sobre o trabalho, participar do lançamento através da escolha de recompensas que passam pela compra antecipada do vinil, contratar show exclusivo, engajar no lançamento virtual e, até mesmo, agendar cursos de composição de canção popular comigo, que, sem falsa modéstia, sou doutor, aliás PhD no assunto, porque tive a grande chance de estudar composição popular na Universidade de Bath, na Inglaterra.


Guaipeca (Leandro Maia)

O guaipeca nunca foge de casa

O guaipeca tem a casa na rua

O guaipeca não precisa de nada

O guaipeca nunca foge da luta

E vê o tumulto ao redor

E uiva pra lua

Se o guaipeca tá num pega pra capar

O guaipeca então encara e se arrisca

Mas guaipeca não tolera general

Um guaipeca nunca se alista

E vê o tumulto ao redor

Uiva pra lua

Quando mundo anda esquisito assim careta feio e mau

Eu penso logo num guaipeca olhando à toa marginal

Essa gente muito chata olhando ingrata pro jornal

Eu não entendo de onde vem todo esse ódio mortal

Essa doença humana insana de ter medo de tudo

Essa doença humana insana de ter raiva de tudo

Essa doença humana insana de ter preço pra tudo

Essa doença humana insana tosca e ocidental

O guaipeca sabido no sol

entende da vida real

E vendo o tumulto ao redor

uiva pra lua

O guaipeca sabido no sol

entende da vida real

E vendo o tumulto ao redor

uiva pra lua

O guaipeca não é de se entregar

Nem vai deixar cair a peteca

O guaipeca sabe a hora de atacar

O guaipeca 

O guaipeca

O guaipeca

me representa

* se foi o quadrado semiótico
Se foi o rizoma

Agora é pão-pão queijo-queijo
Olho por olho
Dente por dente
Em tempos de fascirracismo

É preciso ser binário
Necessário ser do contra
ser anti é necessário
Não basta não ser racista
Não basta não ser fascista
É preciso tomar o lado contrário
Não basta não ser racista
Não basta não ser fascista
É preciso tomar o lado contrário
É Negritodes contra branquitudo*

O guaipeca sabido no sol

entende da vida real

E vendo o tumulto ao redor

uiva pra lua

O guaipeca não é de se entregar

Nem vai deixar cair a peteca

O guaipeca sabe a hora de atacar

O guaipeca 

O guaipeca

O guaipeca

me representa

* trecho do poema Negritodes, de Leandro Maia


Leandro Maia tem três discos autorais: Palavreio (2008, produzido por Pedrinho Figueiredo), Mandinho (2012, produzido por Leandro e Luiz Ribeiro) e Suíte Maria Bonita e Outras Veredas (2014, produzido por André Mehmari). Recebeu o 1º Prémio Ibermúsicas de Composición de Canción Popular, concedido pela Organização dos Estados Ibero-americanos. Recebeu o Troféu Brasil-Sul de Música como intérprete, melhor projeto visual e melhor disco infantil. Possui cinco Prêmios Açorianos de Música (Grupo MPB, Revelação, Intérprete, Disco Infantil), um Troféu RBS Cultura e diversas indicações como compositor e melhor espetáculo. Em 2020 lançou o filme “Paisagens”, dirigido por Juliano Ambrosini e Nando Rossa. Leandro Maia é PhD em Música (Songwriting) pela Bath Spa University, Mestre em Letras (UFRGS) e Licenciado em Música (UFRGS). É professor do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) junto aos Cursos de Bacharelado em Música e Especialização em Artes. Entrevistas: [email protected] , (51) 98444 6072 (somente WhatsApp)

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