Resenha

Noites de delírio

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Noites de delírio
Em Mil Placebos, seu romance de estreia, Matheus Borges faz a crônica de uma geração afogada em informações e perdida na própria psique

Contrariando o clichê muitas vezes repetido, Mil Placebos, romance de estreia do escritor porto-alegrense Matheus Borges, deve ser compreendido começando pela capa. Ou melhor, pelo título, que estabelece de saída uma conexão metalinguística com Mil Platôs, a obra monumental em que Gilles Deleuze e Felix Guattari defendem que não há universalidade, que o mundo foge de qualquer representação definitiva e que a realidade é delirante. A relação de Mil Placebos com Mil Platôs é aqui mencionada por ser de completa intertextualidade, não apenas de mera referência, uma vez que são exatamente essas as conclusões a que chega o protagonista do romance, um jovem que mergulha cada vez mais no isolamento enquanto estabelece contatos rápidos no mundo de ilusões e paranoias dos “chans” de internet, comunidades em que indivíduos sem identidade turbinam sua própria visão obsessiva do mundo até o limite do absurdo. O choque entre essas duas vidas, a interna (claustrofóbica) e a externa (uma comunidade em rede em que o anonimato dos pseudônimos só incentiva a troca do que há de mais subterrâneo na psique alheia) cobrará como preço a lucidez do personagem.

O protagonista sem nome é um jovem assombrado por um histórico pessoal e familiar de instabilidade mental. Sua adolescência foi marcada pelo impacto da depressão em que o pai mergulhou após perder o emprego e ele próprio a certo momento é diagnosticado com personalidade esquizoide. Tímido e isolado na escola, ele se torna mais sociável e comunicativo nos fóruns de internet em que a condição do anonimato facilita a comunicação por permitir a qualquer um, mesmo ao herói anônimo da história, a performance mutável de uma identidade mais do que a construção de uma identidade em si.

“Eu tinha dezessete anos e há dois era membro do fórum Bit Talk. Minha atividade se dava ao longo de muitas horas diárias sob o pseudônimo Eyeball Kid. (…) A barra de carregamento se enchia de azul e um universo se abria para mim, dividido em áreas de interesse, tópicos e subfóruns. Dali eu seguia durante a tarde até de madrugada, acompanhando discussões a respeito dos mais variados assuntos. Criptografia em diferentes linguagens, compressão de arquivos de vídeo e som, processamento de dados, músicos obscuros fadados ao fracasso, filmes perdidos…”

É nesse fórum que ele estabelece a sua até então mais significativa ligação: Jennifer, uma adolescente norte-americana com quem ele constrói, após algumas trocas de mensagens privadas, um diálogo à distância cheio de significados (alguns deles vão escapar ao narrador até ser tarde demais). Um idílio breve e romântico interrompido de modo traumático: um ano após ambos começarem suas trocas de mensagens, o protagonista recebe por e-mail a informação de que a jovem se matou. Mais ou menos na mesma época, o moderador do fórum em que ambos se conheceram desaparece, e o protagonista se entrega a duas buscas paralelas: a primeira, reconstituir a vida de Jennifer e entender seu gesto extremo; a segunda, engajar-se nos esforços dos integrantes do fórum Bit Talk para descobrir o que houve com o desaparecido moderador – aparentemente capturado em uma trama de conspiração, terrorismo e assassinato. 

Ao contrário do que poderia sugerir essa sinopse com toques de techno-thriller, e numa diferença marcante do tipo de protagonista recorrente nesse tipo de romance, quanto mais o narrador de Mil Placebos avança em suas buscas pela verdade, menos autonomia ele parece ter para decidir se está perto dela. Ao contrário dos heróis obstinados da literatura policial, sujeitos que, contra todas as circunstâncias, agem no mundo e o transformam, o protagonista é um jovem comum, com a psique fraturada e com recursos limitados, e seu mergulho nas profundezas anônimas da internet só é feito dependendo de outros – vagos interlocutores online, perfis escondidos sob identidades difusas e sobre quem o personagem sabe cada vez menos a cada interação. A incerteza sobre os outros logo espelha a incerteza sobre si mesmo e sobre a própria realidade – estaria o narrador fabulando em delírio ou de fato topou com um perigo além de sua compreensão sempre imperfeita, mediada por telas e pseudônimos? A verdade existe? Sua descoberta resolveria os problemas do protagonista ou o que ele precisa é, literalmente, de uma pílula milagrosa?

Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari postulam que a única busca possível de apreensão da realidade é a dissecação planificada metódica de uma multiplicidade irredutível e delirante, muitas vezes monstruosa – por baixo da qual ferve um sem-fundo de instâncias irredutíveis. E esse é um bom exemplo também da busca do protagonista de Mil Placebos, com um acréscimo relevante entregue já na menção medicamentosa do título: o protagonista do romance é um símbolo de uma jovem geração à deriva num oceano de informações externas insuficientes para reorganizar o caos interno e para quem as alternativas químicas são cada vez mais frequentes (avançar muito neste ponto seria avançar muito na trama, mas a certo ponto a busca por sentido migra do digital para o químico).

“Em meio à falta de ar, à tontura e ao suor que encharcava sua camisa, ele fez uma constatação importante, a constatação mais importante de sua vida: a de que já era infeliz muito tempo atrás, ainda em seu primeiro emprego, mesmo que não pudesse apontar uma razão específica para sua infelicidade”.

Um dos grandes temas da literatura contemporânea, a paranoia costuma ser expressa com a linguagem do excesso. Seja o excesso da prosa que se dobra em um ciclo inescapável sobre um elemento muito exíguo e quase sem conexão com a realidade, como em David Foster Wallace, seja como um excesso de temas e situações postos em conflito a ponto de se anularem em um caudal tortuoso, como nos livros de Thomas Pynchon. Com uma espécie de caminho do meio representado pela cada vez mais breve elegância de Don DeLillo e sua obsessão pelo diálogo. Mil Placebos pega os três caminhos alternadamente, na maior parte com sucesso, mas nem sempre. Por vezes a prosa algo lodosa e densa é uma perfeita tradução do estado mental de seu protagonista (que está, no fim das contas, narrando em primeira pessoa). Em outros momentos, há descuidos de construção e parece haver uma confusão entre ritmo e redundância. Mas nada que invalide sua qualidade como obra de estreia ou que anule o verdadeiro tour de force estilístico com que a história se conclui nos seus últimos e cada vez mais intensos capítulos.


Carlos André Moreira – Jornalista, escritor, titular do canal de literatura Admirável Mundo Livro

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