Resenha

“O incendiário”: uma boa pedida

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“O incendiário”: uma boa pedida Libretos/Reprodução

   Com uma sequência de ilustrações de Edgar Vasquez e registros fotográficos provenientes dos materiais pesquisados, o livro O incendiário, a mais recente investida historiográfico-literária de Rafael Guimaraens, chegou ao público durante a 68ª Feira do Livro de Porto Alegre. 

   Editado pela Libretos, o volume é curiosamente parecido, no formato, com uma outra publicação da mesma casa, Jurema Finamour: a jornalista silenciada, assinada por Christa Berger. A semelhança está na diagramação quase acadêmica. Citações longas destacadas, fontes arroladas. O de Berger, que se pretende uma biografia, se explica por si. Já o de Guimaraens demanda a leitura para descobrir se, afinal, se está diante de um romance ou de uma biografia. 

   Dúvida que permanece mesmo findas as duzentas e noventa e duas páginas. A sensação pós-leitura é de certo incômodo retroalimentado pela impossibilidade leiga de determinar, prontamente, as delimitações entre realidade e ficção. É algo semelhante ao que se sente ao assistir uma cinebiografia nos cinemas. Enquanto se torna para casa, certa excitação, provocada pela incerteza acerca da quantidade de liberdade artística utilizada, costuma ser companhia.

   Para os filmes baseados em fatos reais, não é raro que surjam páginas na internet ilustrando o que é verídico e o que foi ficcionalizado.  Quem fará o checklist para separar criação e representação no caso de O incendiário? O escritor já se referiu ao trabalho como “literatura de realidade”, sustentando que os acontecimentos do passado são tratados por uma linguagem literária, que lhe permite dar alma aos personagens, assim como conjecturar sobre tópicos controversos. 

   Tendo como base dois rumorosos incêndios que deixaram em escombros os prédios do Tribunal de Justiça de Porto Alegre, em 1949, e o da chefatura de Polícia da capital gaúcha, em 1950, polêmicas não faltam. O tribunal ficava ao lado do Teatro São Pedro e a instituição do poder repressor onde, hoje, está o colégio Bom Jesus Sevigné. 

   De periódicos da época, Guimaraens segue a linha cronológica para apresentar circunstâncias e envolvidos. De processos judiciais, surgem detalhes escamoteados pela imprensa. O elemento central é Major Aragón, um falsário habilidoso, que aparece em múltiplas facetas, mais complexo, portanto, do que um mero vilão fixado no lado do mal. Ele foi acusado de ter sido o responsável pelos sinistros que destruíram incontáveis documentos, investigações e processos em curso, inclusive um famoso inquérito que sustentava acusações a cinquenta e três membros da força policial gaúcha. Eles teriam se apropriado de bens materiais de famílias alemãs e italianas durante a Segunda Guerra Mundial.

   Espoliações, extorsões, improbidades administrativas e falsos testemunhos misturam agentes de repressão e contraventores. Versões oficiais são postas em xeque. Afinal de contas, a quem mesmo interessava destruir a documentação guardada nos edifícios?

   Dados sobre a mesa, apesar de evidente a inclinação do pesquisador/escritor, enquanto narrador, faz o convite ao leitor para que escolha um grand finale particular – e vários são possíveis -, para que coloque a toga de juiz. As histórias de vida dos protagonistas tiveram seus finais, mas a conclusão sobre suas participações ou não, em um ou nos dois eventos, permanecem em aberto. Essa opção de diálogo não subestima a inteligência do leitor. 

   A linguagem de Guimaraens foi burilada pelos seus anos de jornalismo e pelos tantos outros títulos que lançou. A riqueza vocabular é transparente. Um texto que poderia ser caótico, mas que, pelo contrário, na mistura de apresentação gráfica e narrativa, se revela equilibrado. A experiência de (re)descobrir essas histórias é semelhante a comer um bom macarrão harmonizado com vinho, boa pedida.

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