Resenha

Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel

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Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel

É possível conhecer o outro, se cada pessoa é um universo? Maridos, filhos, mães e melhores amigos têm experiências internas paralelas às nossas, apesar dos pequenos pontos de contato que nos unem. Podemos tentar entender o que eles despertam em nossa mente, em nosso corpo e em nossas emoções, e podemos não nos deixar guiar por reações irracionais, julgamentos sumários, inércias comportamentais. Mas estamos presos dentro de nós mesmos.

E como escrever sobre o outro? Se só posso me relacionar com ele, e não estar em sua pele, posso contar sua história de vida? E posso escrever sobre uma pessoa com quem convivi, mas com quem nunca me relacionei? 

Eu, que não sou romancista, venho pensando nessas questões há algum tempo, provavelmente porque me interesso muito pela escrita e leitura de memórias, questões que o livro Saia da frente do meu sol (Autêntica Contemporânea, 2023) me trouxe de volta com muita vivacidade. Nele, o historiador Felipe Charbel se debruça, entre outras coisas, sobre a impossibilidade de escrever sobre o outro, e sobre o próprio paradoxo de se saber incapaz de fazê-lo e no entanto tentar (um tanto melancolicamente, no caso dele) perseguir essa escrita.

Charbel conviveu bastante com seu tio-avô Ricardo (definido pelos familiares como “esquisitão”, “solteirão”, “pessoa complicada”), que vivia de favor no quartinho dos fundos da casa dos pais de Charbel quando este era adolescente, mas o conheceu muito pouco. A presença do tio deixou marcas, mas o timing dos dois pouco coincidiu. E nos momentos em que surgiam possibilidades de conhecer mais sobre Ricardo, a família desconversava, escondia, negava, ou o próprio Charbel desistia. A vida daquele tio, afinal, era vista como um ensinamento pela negativa: não seja como ele, não viva como ele.

Rosa Montero já disse, em A ridícula ideia de nunca mais te ver: “Tendemos a ver as coisas assim: se alguém se suicida, é como se toda a sua vida fosse uma tragédia. Se alguém tem uma velhice solitária, precária e infeliz, é como se as trevas impregnassem toda a sua existência”. Talvez tenha sido difícil para Charbel se desvencilhar da imagem negativa daquele tio-avô, dependente e meio asqueroso (empurrava pela casa um balde de urina, pois tinha alguma paralisia nas pernas), mas um certo segredo que parecia pairar à volta do tio o puxava de volta, para a vontade de escrever sobre aquela figura. Se já é difícil entender o outro, isso se torna ainda mais difícil quando, no processo de escrita, percebemos que no fundo estamos o tempo todo olhando para dentro de nós mesmos.

 E o que fazer quando esse nosso “espaço interior”, como diz Charbel, é um “cômodo sem móveis, um baú vazio, um deserto”? O negócio é guardar os escritos na gaveta, deixar o tempo passar. E um dia se deparar com uma caixa de documentos, com novas fotografias do tio-avô, e decidir escrever sobre todo o processo de tentativa e erro envolvido na escrita.

De brinde, podemos descobrir um novo olhar sobre o outro e, por que não, sobre o mundo. Felipe Charbel com certeza é outra pessoa por ter escrito esse livro. Nós também, por lê-lo.


Julia da Rosa Simões, tradutora e historiadora, autora de A estranha ideia de família (Arquipélago, 2022).

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