Resenha

Via Ápia (2022), de Geovani Martins: Onde as palavras não estão estáticas

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Via Ápia (2022), de Geovani Martins: Onde as palavras não estão estáticas

Via Ápia (2022), de Geovani Martins, é um dos grandes eventos literários dos últimos anos. Para além da manchete grandiloquente, o romance lançado pela Companhia das Letras faz jus à expectativa que se tinha desde a estreia de Martins com O Sol na Cabeça – livro de contos, que já demonstrava um domínio impressionante de linguagem e de andamento narrativo. Em Via Ápia, o autor carioca dá mostras ainda maiores da sua habilidade na construção de uma ótima história. Não é o primeiro a se opor ao abismo existente entre a variante linguística valorizada das classes médias e o estigma colocado sobre o falar das camadas ou regiões periféricas. Antes dele, Guimarães Rosa já tinha rejeitado a oposição que dava destaque à forma linguística das altas classes urbanas em detrimento da expressão dos pobres do meio rural. Em Grande sertão: veredas (1954), Riobaldo recebe a palavra e conta a própria história à sua maneira. 

A novidade de Martins é fazer isso em terceira pessoa. Ele ambienta o seu relato na cidade – mais especificamente na capital do Rio –, ouve a gramática do entorno e não faz concessão a qualquer erudição que possa encobrir seu texto com um ar de universalidade relativamente artificial. O dinamismo urbano e o jeito fluído da comunicação do dia a dia conduz o leitor pelo relato – fazendo do narrador mais uma cria da Rocinha. Geovani lança mão de uma voz onisciente (artigo raro na literatura contemporânea brasileira) e, como José Falero em Os supridores, nos apresenta a vida de alguns amigos que se unem em meio às adversidades cotidianas. 

O uso do indireto livre – artifício técnico que confunde os pensamentos e a fala dos personagens com a dicção do narrador, por meio de recursos discursivos – é empregado com maestria. Os termos atravessados pela oralidade ajudam a caracterizar os moradores e a figura anônima que estrutura a ficção. Ao longo do livro, acompanhamos a trajetória de cinco jovens (Wesley, Washington, Murilo, Douglas e Biel) que dividem um mesmo espaço, a Rocinha, em um mesmo tempo, os anos de 2011 a 2013 – período da implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). 

Se em Os supridores (2020) o uso recreativo da maconha é dificultado pelo baixo interesse financeiro do tráfico na erva, uma vez que a cocaína era consumida por mais gente, dentro de uma melhora econômica do Brasil como um todo, em 2009, em Via Ápia a polícia é quem embaça o comércio e o consumo de drogas por meio de uma violência desproporcional e racista – tônica das atuações das forças de segurança nas comunidades –, tendo uma presença ostensiva, que, com o passar do tempo, traz à tona cenas brutais, atos de corrupção e mortes absurdas. 

O romance de Geovani não é apenas um irmão literário de Grande sertão: veredas ou de Os supridores, mas também compartilha sequências do seu DNA com Cidade de Deus (1997) — outra região carioca que intitula uma outra narrativa, cuja amplitude temporal é maior. Assim como na obra de Paulo Lins, em Via Ápia os efeitos das decisões políticas se desdobram mal e atingem – não poderia ser diferente – os percursos individuais e coletivos dos moradores das localidades relegadas ao esquecimento ou apenas lembradas em momentos pontuais. A grande quantidade de personagens e os pequenos enredos paralelos compõem a trama e reforçam as semelhanças entre as quatro obras.

Em meio aos vários acontecimentos e com uma região como protagonista, o romance de Geovani Martins apresenta um narrador que não se distancia dos fatos em momento nenhum e, como dissemos, não se diferencia dos demais envolvidos. Fazendo um paralelo com a música brasileira, talvez demasiado mas elucidativo das questões em jogo, podemos dizer que Martins alcança em Via Ápia o que os Racionais MC’s alcançaram em Sobrevivendo no Inferno (1997). O escritor rejeita o jeito professoral e bem-comportado do narrador intelectualizado que escreve com os códigos e com o ponto de vista de um outro lugar ou de uma outra classe. Na contramão do esperado, constrói uma perspectiva de dentro, muito consciente – que não explica as gírias e não traduz os acontecimentos representados para uma variante linguística com pressupostos diferentes. 

Os episódios têm a sua própria linguagem. Ela é mantida independentemente de o leitor de classe média entendê-la – o que é um ato de coragem, uma vez que o seu romance é longo (para os moldes atuais) e não faz concessões a uma identidade social de fora. A escolha política do autor pode soar estranha a quem vive nas áreas mais centrais das metrópoles, nas quais habitam as pessoas com maior acesso e com mais tempo para a leitura – por vezes, imunes a uma rotina atribulada de explorações vis e, às vezes, propagadoras do preconceito linguístico, racial e de classe. No entanto, a opção pela comunicabilidade comumente depreciada enriquece a escrita, concede um ritmo ágil e amplia a verossimilhança de Via Ápia

Entre similitudes com Guimarães Rosa, Paulo Lins e José Falero, com toques de lirismo cotidiano e destampando as incongruências de um país desigual, Geovani Martins faz uma outra estreia, agora na prosa longa, e não decepciona novamente. Ajuda a reabilitar o quase esquecido narrador onisciente, demarca uma posição não conciliatória (quando recusa um registro linguístico mediador) e reforça a vitalidade da nossa literatura hoje.


Tiago Lopes Schiffner é doutor em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira pela UFRGS. Integra o grupo de pesquisa: Literatura Brasileira em dinâmica desigual e combinada, sob a orientação do Prof. Dr. Homero Vizeu Araújo. Atualmente, cursa graduação em História da Arte (UFRGS).

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