Parêntese | Resenha

Roendo unha (2019), de Fabrício Corsaletti

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Roendo unha (2019), de Fabrício Corsaletti Guto Leite Tem quase vinte anos que o Fabrício Corsaletti escreve poesia menor. Os quatro primeiros livros não – reunidos em Estudos para o seu corpo. Ali é poesia maior. De lá pra cá, povoam sua poesia bares insalobres, camisetas surradas, cidadezinhas, musas não convencionais. Tem quase vinte anos que a poesia do Fabrício não disputa matéria com agências de publicidade, não busca a palavra definitiva sobre um grande tema, não levanta bandeira de lá ou de cá; salvo a bandeira da vida, mas cá pra nós, a vida não anda dando camisa pra ninguém. Falando assim no vazio parece que estou espezinhando o poeta, mas deixa eu mostrar. Seu livro mais recente, Roendo unha (2019), versa sobre Bodocó, terra do rei do baião, onde por ventura esteve o poeta por uma semana, em setembro. Você abre e está lá: os jumentos sonhamo castelo sonhasob o céu desprotegidoas pessoas se atormentamcomo em qualquer lugar A aparente ausência de rimas esconde a profusão de nasais que parecem enovelar a cena desenhada pelos versos (“jumentos”, “sonham”, “sonha”, “atormentam”, “como em”), dando textura de sonho ao que está sendo dito. E o poema trata justamente disso, vertiginoso no abstrato, primeiro sonham os jumentos, depois o castelo. E que céu desprotegido é esse? Protegido de quê? Quais céus são protegidos? Eles permitem sonhar? Tudo abafado, mas livre, na primeira estrofe. Mundo que se quebra na estrofe seguinte, que Bodocó, que é como nenhum outro lugar, é como qualquer outro lugar, em que pessoas se atormentam. Aliás, as pessoas tormentam umas às outras ou as pessoas atormentam a si mesmas? Tá vendo como é? Você não abre um livro de poesia esperando encontrar um jumento. Acho que existe uma cerca na poesia maior que impede os jumentos de frequentá-la. Os animais maiores, digamos assim, são rouxinóis, sabiás, tigres, leões, águias, vá lá um urso. Você acaba topando com os animais indignos em outras obras menores, como a de Bandeira ou Cabral, nunca numa poesia maior. Falando em Cabral, este outro poema: o jumento pasta no passadoa cabra pasta no presentea cabra pasta no tempo que sobrar Não adianta mobilizar a filosofia incorporada na tensão entre os bichos, por sua sobrevivência. Não adianta falar sobre o tamanho exíguo do presente, em que fugidia, pasta, a cabra. Não adiante coroar o jumento como soberano da fauna bodoquense, tirando os humanos. A menoridade da poesia segue patente. Esses versos com cheiro, com gosto. Esses versos que parecem cobertos da poeira cotidiana dos nossos dias. A poesia menor que o Fabrício tem feito nos últimos vinte anos – ele também tem feito grandes crônicas menores – fica em desvantagem para epígrafes de teses, tatuagens de letrados, citação em matéria de revistas de companhias aéreas, confecção de cartazes de passeata. Por outro lado, carrega uma urgência quebradiça difícil de explicar.  Por ofício, tenho sempre uma fila interminável de livros para ler. Quando vejo que saiu algum livro do Fabrício, leio assim que chega, no dia seguinte, no máximo. E fico ruminando. […]

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Guto Leite Tem quase vinte anos que o Fabrício Corsaletti escreve poesia menor. Os quatro primeiros livros não – reunidos em Estudos para o seu corpo. Ali é poesia maior. De lá pra cá, povoam sua poesia bares insalobres, camisetas surradas, cidadezinhas, musas não convencionais. Tem quase vinte anos que a poesia do Fabrício não disputa matéria com agências de publicidade, não busca a palavra definitiva sobre um grande tema, não levanta bandeira de lá ou de cá; salvo a bandeira da vida, mas cá pra nós, a vida não anda dando camisa pra ninguém. Falando assim no vazio parece que estou espezinhando o poeta, mas deixa eu mostrar. Seu livro mais recente, Roendo unha (2019), versa sobre Bodocó, terra do rei do baião, onde por ventura esteve o poeta por uma semana, em setembro. Você abre e está lá: os jumentos sonhamo castelo sonhasob o céu desprotegidoas pessoas se atormentamcomo em qualquer lugar A aparente ausência de rimas esconde a profusão de nasais que parecem enovelar a cena desenhada pelos versos (“jumentos”, “sonham”, “sonha”, “atormentam”, “como em”), dando textura de sonho ao que está sendo dito. E o poema trata justamente disso, vertiginoso no abstrato, primeiro sonham os jumentos, depois o castelo. E que céu desprotegido é esse? Protegido de quê? Quais céus são protegidos? Eles permitem sonhar? Tudo abafado, mas livre, na primeira estrofe. Mundo que se quebra na estrofe seguinte, que Bodocó, que é como nenhum outro lugar, é como qualquer outro lugar, em que pessoas se atormentam. Aliás, as pessoas tormentam umas às outras ou as pessoas atormentam a si mesmas? Tá vendo como é? Você não abre um livro de poesia esperando encontrar um jumento. Acho que existe uma cerca na poesia maior que impede os jumentos de frequentá-la. Os animais maiores, digamos assim, são rouxinóis, sabiás, tigres, leões, águias, vá lá um urso. Você acaba topando com os animais indignos em outras obras menores, como a de Bandeira ou Cabral, nunca numa poesia maior. Falando em Cabral, este outro poema: o jumento pasta no passadoa cabra pasta no presentea cabra pasta no tempo que sobrar Não adianta mobilizar a filosofia incorporada na tensão entre os bichos, por sua sobrevivência. Não adianta falar sobre o tamanho exíguo do presente, em que fugidia, pasta, a cabra. Não adiante coroar o jumento como soberano da fauna bodoquense, tirando os humanos. A menoridade da poesia segue patente. Esses versos com cheiro, com gosto. Esses versos que parecem cobertos da poeira cotidiana dos nossos dias. A poesia menor que o Fabrício tem feito nos últimos vinte anos – ele também tem feito grandes crônicas menores – fica em desvantagem para epígrafes de teses, tatuagens de letrados, citação em matéria de revistas de companhias aéreas, confecção de cartazes de passeata. Por outro lado, carrega uma urgência quebradiça difícil de explicar.  Por ofício, tenho sempre uma fila interminável de livros para ler. Quando vejo que saiu algum livro do Fabrício, leio assim que chega, no dia seguinte, no máximo. E fico ruminando. […]

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