Ensaio | Parêntese

Steiner, por Pedro Gonzaga: O herói incomum

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Steiner, por Pedro Gonzaga: O herói incomum Os amantes de aventuras, os adictos à política, os adoradores de vilões ardilosos terão sempre uma plêiade de modelos à disposição. Nos livros, nos filmes, nas séries, é fácil encontrar heróis fortes, boquirrotos, lustrosos de poder, servidores adestrados dos lemas do tempo: protagonismo, luta, transformação. Talvez tenha sido sempre assim. Heróis dinâmicos, violentos, mobilizadores. Raros entre nós terão escolhido como heróis criaturas de gabinete, cercadas de livros, ocupadas em preservar os tesouros do pensamento para além da algazarra do mundo, da algaravia da realidade.  Heróis como Borges. Ou George Steiner. A recente morte do autor de Presenças verdadeiras, na longevidade dos seus noventa anos, representa, ao menos por ora, o golpe de misericórdia na grande tradição humanista europeia, baseada em seu amor pela erudição literária e artística, o apreço pela tradição, pela conservação do saber, pelo domínio profundo das línguas clássicas e vernaculares, mas, acima de tudo, pela busca por um conhecimento mais horizontal do que vertical.  Seria, contudo, um equívoco dizer que Steiner era um generalista. Obras como Depois de Babel e Linguagem e Silêncio desmentem tal afirmação, com suas intrincadas e filosóficas proposições, com um estilo de leitura profunda, avessa às grandes sínteses. Ocorre que o próprio Steiner almejava a condição de polímata, tendo estudado física e matemática, sem mencionar o enciclopédico conhecimento das humanidades e também a duradoura ligação com o jornalismo. Sobrevivente da perseguição nazista aos judeus durante a Segunda Guerra (seus colegas de meninice foram quase todos aniquilados), Steiner foi ainda cedo para os Estados Unidos, onde fez seus estudos. Criado num lar de língua francesa e alemã, acabou se tornando naturalmente trilíngue, condição rara, complementada posteriormente com o italiano, o grego e o latim. O modo como começou a aprender grego é uma das mais belas páginas de Errata, sua pequena autobiografia. Nela, recupera o episódio em que o pai suspende a leitura em voz alta de um trecho emocionante da Ilíada alegando que a tradução inglesa havia omitido o restante da cena. Desesperado, o menino pergunta se não há como ele descobrir o que acontece, ao que o pai, de caso pensado, diz ter o original em grego, tendo preparado já de antemão os elementos de estudo para o filho. Esta ideia de responsabilidade com a herança cultural, com a importância da transmissão generacional, associada ao poder sedutor do conhecimento, estiveram na base de sua larga carreira como docente e em sua admiração pelos grandes professores, Sócrates, Buda, Jesus, tema de um livro menos lembrado, mas excelente, chamado Llições dos mestres. É possível dizer, com base nas tantas entrevistas que concedeu ao longo da vida, e do que escreveu no essencial ensaio No castelo do barba azul, que a grande questão que o acompanhou até o fim de seus dias foi tentar entender como homens que liam Goethe e ouviam Schumann, que apreciavam a filosofia e as artes, podiam ser os mesmos que seguiam tranquilamente de manhã para o trabalho de comandar ou operar campos de concentração. Desde o mundo clássico, passando pelo […]

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Os amantes de aventuras, os adictos à política, os adoradores de vilões ardilosos terão sempre uma plêiade de modelos à disposição. Nos livros, nos filmes, nas séries, é fácil encontrar heróis fortes, boquirrotos, lustrosos de poder, servidores adestrados dos lemas do tempo: protagonismo, luta, transformação. Talvez tenha sido sempre assim. Heróis dinâmicos, violentos, mobilizadores. Raros entre nós terão escolhido como heróis criaturas de gabinete, cercadas de livros, ocupadas em preservar os tesouros do pensamento para além da algazarra do mundo, da algaravia da realidade.  Heróis como Borges. Ou George Steiner. A recente morte do autor de Presenças verdadeiras, na longevidade dos seus noventa anos, representa, ao menos por ora, o golpe de misericórdia na grande tradição humanista europeia, baseada em seu amor pela erudição literária e artística, o apreço pela tradição, pela conservação do saber, pelo domínio profundo das línguas clássicas e vernaculares, mas, acima de tudo, pela busca por um conhecimento mais horizontal do que vertical.  Seria, contudo, um equívoco dizer que Steiner era um generalista. Obras como Depois de Babel e Linguagem e Silêncio desmentem tal afirmação, com suas intrincadas e filosóficas proposições, com um estilo de leitura profunda, avessa às grandes sínteses. Ocorre que o próprio Steiner almejava a condição de polímata, tendo estudado física e matemática, sem mencionar o enciclopédico conhecimento das humanidades e também a duradoura ligação com o jornalismo. Sobrevivente da perseguição nazista aos judeus durante a Segunda Guerra (seus colegas de meninice foram quase todos aniquilados), Steiner foi ainda cedo para os Estados Unidos, onde fez seus estudos. Criado num lar de língua francesa e alemã, acabou se tornando naturalmente trilíngue, condição rara, complementada posteriormente com o italiano, o grego e o latim. O modo como começou a aprender grego é uma das mais belas páginas de Errata, sua pequena autobiografia. Nela, recupera o episódio em que o pai suspende a leitura em voz alta de um trecho emocionante da Ilíada alegando que a tradução inglesa havia omitido o restante da cena. Desesperado, o menino pergunta se não há como ele descobrir o que acontece, ao que o pai, de caso pensado, diz ter o original em grego, tendo preparado já de antemão os elementos de estudo para o filho. Esta ideia de responsabilidade com a herança cultural, com a importância da transmissão generacional, associada ao poder sedutor do conhecimento, estiveram na base de sua larga carreira como docente e em sua admiração pelos grandes professores, Sócrates, Buda, Jesus, tema de um livro menos lembrado, mas excelente, chamado Llições dos mestres. É possível dizer, com base nas tantas entrevistas que concedeu ao longo da vida, e do que escreveu no essencial ensaio No castelo do barba azul, que a grande questão que o acompanhou até o fim de seus dias foi tentar entender como homens que liam Goethe e ouviam Schumann, que apreciavam a filosofia e as artes, podiam ser os mesmos que seguiam tranquilamente de manhã para o trabalho de comandar ou operar campos de concentração. Desde o mundo clássico, passando pelo […]

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