Três… contos. Empacamos já na segunda palavra da chamada. Essas “coisas” que Kafka escreve, o que são? Fragmentos — mas dados como concluídos pelo autor. Parábolas, alegorias — mais realistas do que gostaríamos. Pesadelos — acordados, terrivelmente acordados. Ao fim e ao cabo, temos que nos contentar com “contos”: historietas contadas, não interessa como. Racconti, récits, Erzählungen, stories. Que importa o rótulo no frasco, se o remédio segue tão amargo quanto antes? Vamos ao que interessa: o que esses três contos têm em comum e por que os escolhi para traduzir neste número. Os pais de família que me leem já tiveram alguma aflição parecida com a do primeiro conto? (Preferi “aflição”, mais forte e existencial que “preocupação”, a tradução tradicional do título.) Destaque para o parágrafo de abertura, uma finta brilhante: a especulação etimológica, ao nos levar para o plano abstrato, aumenta ainda mais o choque da materialidade insólita de Odradek no trecho seguinte. Mas afinal, o que diabos é Odradek? Um duende moderno, sintético e situado fora da natureza, sem propósito nem morte. OK. Mas não é seu aspecto ou comportamento que aflige o cidadão-narrador — é a ideia de que ele perdurará por gerações sem conta. Depois de conhecer essa pequena obra-prima, fica difícil olhar para um plástico quebrado qualquer sem pensar a mesma coisa. Nosso lixo nos sobreviverá. Para ficar no mesmo campo das neuras modernas, encaixei um preferido pessoal meu, O vizinho. Esse escrito magnífico, inesquecível, é um microcosmo dos temas essenciais de Kafka: o anonimato da cidade grande (nunca conhecemos o ramo de negócio do narrador; este e as secretárias não têm nome; Harras passa por nós tão rápido que sequer ganha um rosto, e só é nomeado pela tabuleta, que, como os boatos a respeito dele, no fundo não informa bulhufas); as interações humanas mediadas por entidades incorpóreas (geralmente, a burocracia; aqui, as tecnologias de comunicação, como o nosso labirinto atual dos aplicativos e privacidade de dados); a ansiedade do êxito, reverso exato do medo do fracasso; a inutilidade de todos os esforços (Desiste! é o mote de outra grande miniatura kafkiana). Uma possibilidade de leitura óbvia, mas fascinante, seria a projeção esquizoide do narrador: Harras trabalha num ramo parecido com o dele; as salas são praticamente geminadas; ambos são homens jovens e ambiciosos. Quem sabe se Harras não é o que ele gostaria de ser mas não tem coragem, um businessman cheio de iniciativa e sem grandes escrúpulos, que faz o que deve ser feito, “sem mais aquela”? Notem o sutil arco que vai do primeiro parágrafo, de uma confiança inabalável, até o último, em que já está anunciada a ruína do nosso problemático comerciante. Harras sai voando pelas ruas para fechar o negócio antes da concorrência, mas só se conseguir chegar ao seu destino — e é possível chegar a qualquer lugar? A distância que separa alguém da sua incumbência, não será ela infinita? Em Uma mensagem imperial, Kafka reequaciona o paradoxo de Aquiles e a tartaruga, agora em chave lendária, […]
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