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Théo Amon: O spleen de Porto Alegre

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Théo Amon: O spleen de Porto Alegre Spleen é a palavra em inglês para baço, o órgão. Propagou-se pelos outros idiomas como sinônimo de enfado, melancolia, tédio indefinido, também má vontade, irritação sem objeto preciso — o atual “ranço”. (Já se viu aportuguesado como “esplim”, mas não recomendo.) Por quê? Porque antigamente, até a medicina ganhar bases realmente científicas, acreditava-se que o temperamento básico de cada pessoa era determinado pelo equilíbrio entre quatro fluidos corporais (“humores”, como se chamavam na época; por isso se fala em alguém estar de bom ou mau humor): sangue, fleuma, bile negra e bile amarela. A preponderância de um deles resultaria na desarmonia da personalidade. O excesso de bile negra, secretada pelo baço, daria o humor melancólico, ensimesmado, inabordável. Na literatura, o romantismo se apossou desse traço e o aprofundou para criar alguns dos seus tipos mais característicos. São splenetic os sombrios heróis do inglês Lord Byron, aristocratas desdenhosos que se furtam à lei e à ordem através de atos escabrosos ou peregrinações. O spleen também deixou sequelas em personagens memoráveis da literatura russa, como o Pietchórin, de Liérmontov (Um herói do nosso tempo), o personagem epônimo de Ievguêni Oniéguin, romance em versos de Púchkin, ou o amoral Stavróguin de Dostoiévski (Os demônios). Quem quiser provar o esplim brasileiro, é só ler os contos de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, ou a exótica poesia de Augusto dos Anjos. Mas quem explicitamente deu cartas de nobreza ao spleen foi o francês Charles Baudelaire (1821–1867), que trouxe à poesia de alto nível o nojo, a feiura, o vício, o crime, a perversidade, o apodrecimento (um dos seus poemas, famoso, é sobre uma carcaça animal em decomposição). Uma das seções da sua obra-prima, As flores do mal, chama-se Spleen e ideal, com vários poemas trazendo o baço no título. Outro livro de Baudelaire, menos conhecido e de qualidade irregular, chama-se O spleen de Paris (pequenos poemas em prosa). Agora que já conhecemos o spleen, o título dispensa explicação. Mas e o qualificativo entre parênteses? Um poema em prosa é diferente de um poema em verso livre (sem métrica fixa) e branco (sem rima). Sua disposição na página é como a de um conto ou romance: texto corrido, sem divisão em versos ou estrofes. O que lhe preserva o direito de se chamar “poema” é, além de uma rítmica mais cerrada que a prosa comum, essa filtragem de todas as impressões do mundo externo através do eu lírico, cuja sensibilidade permanece o centro de gravidade de tudo. O devaneio e a livre associação estão permitidos, assim como a liberdade em relação a linhas estruturantes ou mesmo a uma temática bem-definida. Como se vê, as miniaturas enigmáticas de Kafka em Contemplação não estão muito longe no horizonte. Escolhi e traduzi algumas dessas pérolas negras que me pareceram apropriadas ao momento, ao spleen de Porto Alegre. Se é para estarmos melancólicos, que seja em grande estilo. Manipulei a ordem dos fragmentos para criar uma espécie de narrativa na leitura, mas também é possível lê-los misturados, ou […]

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Spleen é a palavra em inglês para baço, o órgão. Propagou-se pelos outros idiomas como sinônimo de enfado, melancolia, tédio indefinido, também má vontade, irritação sem objeto preciso — o atual “ranço”. (Já se viu aportuguesado como “esplim”, mas não recomendo.) Por quê? Porque antigamente, até a medicina ganhar bases realmente científicas, acreditava-se que o temperamento básico de cada pessoa era determinado pelo equilíbrio entre quatro fluidos corporais (“humores”, como se chamavam na época; por isso se fala em alguém estar de bom ou mau humor): sangue, fleuma, bile negra e bile amarela. A preponderância de um deles resultaria na desarmonia da personalidade. O excesso de bile negra, secretada pelo baço, daria o humor melancólico, ensimesmado, inabordável. Na literatura, o romantismo se apossou desse traço e o aprofundou para criar alguns dos seus tipos mais característicos. São splenetic os sombrios heróis do inglês Lord Byron, aristocratas desdenhosos que se furtam à lei e à ordem através de atos escabrosos ou peregrinações. O spleen também deixou sequelas em personagens memoráveis da literatura russa, como o Pietchórin, de Liérmontov (Um herói do nosso tempo), o personagem epônimo de Ievguêni Oniéguin, romance em versos de Púchkin, ou o amoral Stavróguin de Dostoiévski (Os demônios). Quem quiser provar o esplim brasileiro, é só ler os contos de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, ou a exótica poesia de Augusto dos Anjos. Mas quem explicitamente deu cartas de nobreza ao spleen foi o francês Charles Baudelaire (1821–1867), que trouxe à poesia de alto nível o nojo, a feiura, o vício, o crime, a perversidade, o apodrecimento (um dos seus poemas, famoso, é sobre uma carcaça animal em decomposição). Uma das seções da sua obra-prima, As flores do mal, chama-se Spleen e ideal, com vários poemas trazendo o baço no título. Outro livro de Baudelaire, menos conhecido e de qualidade irregular, chama-se O spleen de Paris (pequenos poemas em prosa). Agora que já conhecemos o spleen, o título dispensa explicação. Mas e o qualificativo entre parênteses? Um poema em prosa é diferente de um poema em verso livre (sem métrica fixa) e branco (sem rima). Sua disposição na página é como a de um conto ou romance: texto corrido, sem divisão em versos ou estrofes. O que lhe preserva o direito de se chamar “poema” é, além de uma rítmica mais cerrada que a prosa comum, essa filtragem de todas as impressões do mundo externo através do eu lírico, cuja sensibilidade permanece o centro de gravidade de tudo. O devaneio e a livre associação estão permitidos, assim como a liberdade em relação a linhas estruturantes ou mesmo a uma temática bem-definida. Como se vê, as miniaturas enigmáticas de Kafka em Contemplação não estão muito longe no horizonte. Escolhi e traduzi algumas dessas pérolas negras que me pareceram apropriadas ao momento, ao spleen de Porto Alegre. Se é para estarmos melancólicos, que seja em grande estilo. Manipulei a ordem dos fragmentos para criar uma espécie de narrativa na leitura, mas também é possível lê-los misturados, ou […]

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