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Tradução como derivação estética e a percepção dos clássicos

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Tradução como derivação estética e a percepção dos clássicos

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Há sete anos, vim para Porto Alegre e me tornei estrangeiro aqui na República Sul-Riograndense. Hoje já me sinto em casa nestas plagas, com todos os laços de philía que aqui criei. Porém, sei (e sou lembrado constantemente do fato de) que não sou daqui. Ironicamente, quando volto para São Paulo, as pessoas dizem que estou mudado e que já não sou paulista. Ou seja: eu me tornei esse cidadão de lugar nenhum. 

Penso que algo semelhante se dê com a minha situação acadêmica. Eu sempre me senti um outsider dentro dos Estudos Clássicos, propondo coisas que faziam as pessoas da área por vezes me acharem exótico ou até “não-acadêmico”. Quinze anos atrás, quando dei meus primeiros passos na tradução musical da poesia grega antiga, disseram-me seguidas vezes que o que eu estava fazendo não cabia na academia, que não era pesquisa. Ainda hoje enfrento dificuldades nesse sentido, mas a situação certamente é muito mais propícia para projetos criativos dentro da universidade.

Por outro lado, o contato com a Literatura Comparada e com as sendas do pós-modernismo (para mim, uma aventura mais recente) também não tem sido fonte de menores estranhamentos. Tenho dificuldade de lidar com a tendência pós-moderna de inventar conceitos para tratar de fenômenos já mapeados, bem como com a liberdade excessiva com que alguns colegas e alunos trabalham com os textos da antiguidade. Nesse caso, sou eu quem acaba se sentindo ultrapassado, sem jogo de cintura para acompanhar os movimentos das novas gerações.

Com o tempo, contudo, tenho aprendido a importância tanto do rigor herdado dos tempos da Filologia quanto da abertura proporcionada pela contemporaneidade. Espero que meu texto aponte para uma possibilidade de encontro frutífero entre esses dois universos, que, a meu ver, têm uma relação muito mais próxima do que as frequentes inimizades entre os departamentos talvez possam indicar.

Como o título indica, há dois conceitos que podem resumir o conjunto das minhas ocupações e preocupações nos últimos anos: derivação estética e percepção (dos clássicos, em especial).

Nenhum dos dois conceitos é particularmente novo (e nisso me pós-modernizo enormemente), mas o que quero sintetizar com eles talvez seja, na medida em que apontam para um ângulo de visão e para um conjunto de leituras e vivências bem pessoais, que moldaram minha maneira de interpretar, ler, traduzir e mesmo criar literatura. 

Quando falo em derivação estética, poderia, em vez disso, usar a terminologia de Harold Bloom na Angústia da influência, quando diz que toda nova obra de arte resulta de uma leitura equivocada de obras do passado. De certo modo, é a isso que me refiro, mas por um ângulo e com um escopo diferente. Emprego a ideia de derivação estética para a tradução e a criação de literatura que busca não simplesmente emular uma estética passada mas também dar continuidade a ela, de modo premeditado e crítico. Por isso a palavra derivação me parece interessante para descrever esse processo, pois, por um lado, concentra a ideia de algo que deriva de outro algo já existente e, por outro lado, também alude à inconstância desse objeto que miramos, como uma miragem, algo à deriva no horizonte. Ainda que a angústia da influência lide, grosso modo, com o mesmo fenômeno de criar obras a partir do passado, penso que a perspectiva é distinta. Em minha relação com os Clássicos, busco um contato aberto, consciente e sem angústia de ser influenciado. Aponto abertamente para as obras com que estou dialogando. Se um leitor nota a dívida que tenho com o passado, isso não me parece ser um fator que diminua minha criação, pois creio que toda criação é necessariamente uma recriação de coisas que já existiam antes. Logo, podemos deixar a angústia para lidar com outros problemas da existência, como nossa finitude e precariedade biológica.

De modo semelhante, em vez de falar em percepção, poderia muito bem usar a terminologia já existente no campo da estética da recepção. A bem da verdade, estou tratando do mesmo fenômeno já mapeado por Jauss e outros: a ideia de que uma obra é recebida de maneiras muito diferentes a depender do lugar, do tempo e de outros fatores determinantes para sua leitura. Porém, penso que percepção possa alterar levemente o ângulo e o escopo de como entendemos esse processo, apontando para uma instabilidade maior do objeto em tela. Receber algo significa tê-lo em sua inteireza. Podemos reagir de modos diferentes e ter diferentes compreensões do que seja: isso já estava previsto na teoria de Jauss. Mas pela ideia de recepção não se marca suficientemente, a meu ver, a noção de que nós não temos a Ilíada do século VIII a.C. ou as obras de Shakespeare como foram apresentadas enquanto ele estava vivo – a começar pelos problemas de estabelecimento de texto. Mesmo as obras que se mantiveram exatamente como foram editadas há séculos não constituem objetos imutáveis, porque existem em um tempo e em espaços distintos, sendo observados por sujeitos distintos. Nesse sentido, penso que o termo percepção saliente essa precariedade do processo de recepção: nós não recebemos as obras do passado; apenas as vislumbramos a uma distância maior ou menor, com mais ou menos interferência de intempérie e de outras dificuldades.

O que me agrada na Literatura Comparada é a forma construtiva com que ela me permite lidar com isso que estou chamando de interferência na percepção. Nos Estudos Clássicos, de modo geral, a postura de muitos colegas me parece ser a de buscar compreender a obra estritamente a partir da forma mentis do período em que ela foi escrita. Ou seja: para ler corretamente a Ilíada, deveríamos unicamente nos esforçar em criar dentro de nós mesmos um modelo reconstituído de um cidadão grego genérico do século VIII a.C, com todas as suas particularidades sociológicas, intelectuais e culturais.

Nas últimas décadas, com o crescimento dos estudos de recepção dentro das Clássicas, tem-se compreendido a importância de historiar o modo pelo qual as obras do passado foram recebidas ao longo do tempo nos mais diversos locais. Todavia, para o tempo presente, parece prevalecer ainda a busca pela forma mentis de outrora como a maneira correta de ler uma obra clássica.

Há, sim, alguma abertura para propostas mais ousadas, como o poema Memorial, de Alice Oswald, a Odisseia de Penélope, de Margaret Atwood, a War Music, de Christopher Logue, a Antigonick, de Anne Carson, entre outras empreitadas semelhantes de releitura radical dos clássicos. Também no Brasil há colegas escritores trabalhando em projetos semelhantes de diálogo criativo com os Clássicos. Em especial, posso citar: i) o recente livro da Mônica de Aquino, Linha, labirinto (2020), em que a poeta assume a persona de Penélope para compor uma série de poemas líricos repensando a condição da rainha de Ítaca a partir de nossos olhos contemporâneos; ii) a novela Contra um bicho da terra tão pequeno, de Érico Nogueira (2018), que toma o episódio da Conjuração de Pisão (Tácito, Anais XV 47-74) como base para construir uma história farsesca sobre a política brasileira; iii) o ainda inédito Eneias da Silva, de Fábio Cairolli, um epílio que nos mostra um Eneias trabalhador pobre e brasileiro; iv) meu próprio Lícidas (2019), uma tragédia composta em emulação do teatro grego, versando a respeito de um episódio narrado por Heródoto no Livro IX de suas Histórias.

Esses projetos existem e são recebidos com maior ou menor empolgação pelos colegas dos Estudos Clássicos, mas ouso dizer que sejam obras mais lidas e bem-quistas dentro da Literatura Comparada, onde esses elementos de interferência a que me referi não são vistos como algo que devamos necessariamente eliminar, e sim como outras camadas de sentido que podemos aproveitar para ler, traduzir ou criar literatura. 

A interferência pode ser um aspecto potencialmente positivo e rico de significado. Talvez seja onde tenhamos a melhor chance de encontrar algo de verdadeiro sobre nós e nosso tempo. Entretanto, ela, a interferência é muito difícil de ser compreendida em toda sua extensão, já que é parte intrínseca do processo dialético pelo qual construímos nossa percepção de um objeto. Não há como nos abstrairmos para apreendermos o que seja a Odisseia de modo isolado, ou apenas em relação a um determinado conjunto de informações históricas razoavelmente bem-aceitas a respeito da época de sua composição e do que ela então significava. 

Curiosamente, os próprios antigos não tinham grandes pudores ao receber obras de outras culturas. Um exemplo famoso é o caso do Punicozinho, de Plauto, título proposto na tradução recente de Beethoven Alvarez (UFF). No início da peça, é dito que a obra se chama Karchedónios (cartaginês) em grego, mas que Plauto preferiu chamá-la de Poenulus (punicozinho). A peça é ao mesmo tempo uma tradução de uma obra grega mas também uma obra original de Plauto, que a modificou para se adaptar aos caracteres, aos referentes e ao humor dos romanos. Em termos contemporâneos, talvez disséssemos que se trata de uma tradução domesticadora ou de uma transcriação, dependendo do quanto quiséssemos salientar o caráter autoral de Plauto nesse processo. Também Catulo, ao se apropriar do fragmento 31 de Safo em seu famoso poema 51, faz um misto bem peculiar de tradução e de obra autoral, iniciando o processo de forma próxima ao texto da poeta de Lesbos, mas depois tomando um caminho próprio, divergente, mais afeito ao caráter de sua poesia. O mesmo aconteceu depois quando Byron e tantos outros traduziram esses poemas.

Até o século XIX, não causava espanto a ninguém que se traduzisse modificando voluntariamente o conteúdo do texto. Aqui não falo das mudanças que necessariamente ocorrem mesmo quando se tenta verter um texto da forma mais “fiel” possível, com tudo que há de problemático nessa acepção. Falo de uma postura em que já se espera de antemão que o tradutor seja autor. O século XX trouxe uma variedade de teorias e nomenclaturas para lidar pejorativamente com esse processo, que data desde a antiguidade e que já conferia ao tradutor uma liberdade que só vai começar a ser recuperada na segunda metade do século XX com Haroldo de Campos e Meschonnic. 

Penso que a busca pela compreensão histórica do passado e o aproveitamento do que seja interferência de leitura são dois movimentos que não se excluem, e sim se complementam. Só se pode caracterizar com alguma clareza o que seja interferência a partir da caracterização do que ela não é. Asseverar a identidade de algo depende também de compreender sua alteridade em relação ao resto.

Em suma, penso que os Estudos Clássicos tenham muito a ganhar com os procedimentos da Literatura Comparada e, da mesma forma, tenho certeza de que a Literatura Comparada sempre ganhou e continuará ganhando com os resultados das pesquisas realizadas nos Estudos Clássicos.

Como fechamento, gostaria de citar o início do conto “Mutações”, de Borges (na tradução de Josely Vianna Baptista), trecho que diz de forma artística e brilhante o que tentei explicar nestas poucas páginas:

Num corredor vi uma flecha que indicava uma direção e pensei que aquele símbolo inofensivo tinha sido algum dia uma coisa de ferro, um projétil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e nublou o sol nas Termópilas e deu a Harald Signurdarson, para sempre, sete palmos de terra inglesa.

Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um ginete magiar; um laço enroladilho rodeava o peito de sua cavalgadura. Soube que o laço, que antes andou pelo ar e prendeu os touros do pasto, não passava de um luxo insolente do arreio domingueiro.

No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e se estendiam e os rodeava um círculo. Essa cruz restrita e limitada figurava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a “máquina vil” insultada por Luciano de Samósata.

Cruz, laço e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que me maravilham, quando não há na Terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o futuro.


Leonardo Antunes é poeta, tradutor e professor de língua e literatura grega na UFRGS. Publicou, entre outros, Édipo Tirano, tradução da clássica tragédia de Sófocles pela editora Todavia.

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