Tradução

Uma vinheta

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Uma vinheta

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Parêntese acolhe uma série que inicia hoje: Tradutores pensam tradução. Convidamos tradutoras e tradutores a pensarem seu ofício sob qualquer ângulo ou abordagem, liberdade total. Como os convidados são todos extraordinários – com atuação em editoras grandes e pequenas, do centro e das bordas do país, em diferentes pares linguísticos, na tradução de poesia, ficção, ensaio -, o resultado não surpreende: reunimos um conjunto admirável de textos que discutem a tradução a partir de perspectivas históricas, comparadas, intimistas, ou seja, variadas como devem ser. 

Começamos com o trabalho detetivesco de Denise Bottmann, que dispensa apresentações – é praticamente impossível que alguém interessado na área de humanidades no Brasil não tenha lido uma tradução da Denise -, e seguimos nas próximas semanas com textos de Andrei Cunha, Liziane Kugland, Sérgio Karam, Denise Sales, Fernanda Bastos, Hugo Lorenzetti, Julia da Rosa Simões e Rosa Freire d’Aguiar.

Esta série se inscreve em uma tradição muito cara aos Estudos da Tradução no Brasil – pensem em Paulo Rónai, em Boris Schnaiderman, em Aurora Bernardini, em Lia Wyler, tradutores-pensadores que participam do debate teórico sobre tradução altamente amparados em sua prática do ofício. Essa teorização pé no chão dá ao campo da tradução uma vitalidade enorme, que esperamos alimentar com os depoimentos aqui reunidos.

Karina de Castilhos Lucena


I.

Paulo M. de Oliveira (ou, às vezes, Paulo M. Oliveira) é um nome que aparece com frequência nos créditos de tradução de diversos clássicos da literatura e do pensamento ocidental. Diversas traduções suas continuam em circulação até a data de hoje, em editoras variadas. Mas não se encontra nenhum artigo, nenhuma informação, nenhuma referência biográfica sobre ele.

Rastreando as obras que Paulo M. de Oliveira traduziu, nota-se que as datas de primeira edição se concentram entre os anos 1935 e 1939, publicadas basicamente pela Athena (após a reforma ortográfica de 1942, Atena) Editora. Localizei as seguintes traduções de sua lavra, apresentadas abaixo em ordem cronológica:

  • Tommaso Campanella, A Cidade do Sol, 1935
  • Alfred de Musset, Confissões de um Filho do Século, 1936, com Adelaide Pinheiro Guimarães
  • Blaise Pascal, Pensamentos, 1936
  • François Rabelais, Gargântua, 1936
  • Charles Baudelaire, Pequenos Poemas em Prosa, 1937
  • Guido de Ruggiero, Sumário de História da Filosofia, 1937
  • Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, 1937
  • Dante Alighieri, Vida Nova, 1937, com Blasio Demétrio
  • Erasmo de Roterdã, Elogio da Loucura, 1939
  • René Descartes, Discurso sobre o Método, 1939
  • La Rochefoucauld, Máximas e Reflexões, 1939 (este pela Companhia Brasil Editora)

Alguns detalhes chamam a atenção: a densa concentração de uma bibliografia de alto nível em apenas quatro anos; além disso, a concentração das publicações numa mesma casa editorial; por fim, o súbito desaparecimento de qualquer tradução de Paulo M. de Oliveira após 1939.

Quem era ele? E quem era Adelaide Pinheiro Guimarães? E esse implausibilíssimo Blasio Demétrio, sobre o qual não se encontra referência nenhuma, a não ser a parceria com Paulo M. de Oliveira na tradução de Vida Nova? E quanto à Athena – a que se devia sua identidade editorial tão marcada?


II.

Vale a pena talvez dar uma rápida espiada no perfil da Athena Editora, inicialmente sediada no Rio de Janeiro e mais tarde operando em São Paulo.

Desde sua fundação em 1935, a Athena se destacou por seu catálogo de conteúdo humanista clássico, parecendo até mesmo uma propedêutica à história da cultura universal. São dos primeiros ou incipientes aportes no Brasil de obras de Demóstenes, Petrônio, Plutarco, Suetônio, Dante, Campanella, Erasmo, Maquiavel, Shakespeare, Rabelais, Molière, Racine, La Bruyère, Rousseau, Voltaire, Diderot, Musset, Spinoza, Hegel, Ricardo, Darwin, Baudelaire, Croce, Kropótkin, Górki… Chama a atenção também o perfil de seus colaboradores: Berenice e Lívio Xavier, Sady Garibaldi, Maria Lacerda de Moura, Victor de Azevedo, Francisco Frola, entre outros importantes nomes da esquerda brasileira. 

Laurence Hallewell, em seu amplo levantamento da história d’ O Livro no Brasil, faz apenas uma brevíssima menção à editora, desproporcional à sua importância e não tão efêmera existência, que se prolongou até os inícios dos anos 1960. Ao tratar dos efeitos da profunda crise mundial a partir de 1929, Hallewell comenta a brutal queda no volume de livros importados, caindo para menos de um terço e chegando ao pico de baixa em 1936, quando a importação da França ficou 94% abaixo dos patamares de 1928. É nesse contexto econômico que o livro brasileiro e a ficção traduzida no Brasil têm um arranque inédito, iniciado, diz ele, pela Livraria do Globo: e “outras logo a acompanharam, a Athena Editora, do Rio, por exemplo, fundada em 1935” (HALLEWELL, 1985, p. 317). É esta a única referência que Hallewell faz à Athena.

Sergio Miceli, em Intelectuais à Brasileira, também cita rapidamente a Athena, classificando-a entre as editoras de porte médio daquele período, e menciona a cifra de 70 mil exemplares publicados pela casa em 1937 (MICELI, 2001, p. 151).

Quanto à fundação da empresa, o Diário Oficial da União publica a autorização de registro da Athena Editora em sua edição de 26 de agosto de 1935, com o termo 36.330. Seu proprietário: P. Petraccone.

Trata-se de Pasquale Petraccone (c.1895-1951), economista natural de Potenza, que migrou para o Brasil em 1926, escapando à ascensão do fascismo na Itália, editor do jornal Italia Libera, integrante destacado da Liga Antifascista das colônias italianas no Brasil, de agitada biografia e intensa participação nos movimentos de esquerda no país, classificado nos arquivos do DEOPS como trotskista. Há fartíssimo material sobre sua militância política, mas muito pouco sobre seu trabalho à frente da Athena Editora.


III.

Sobre Adelaide Pinheiro Guimarães, parceira de Paulo M. Oliveira na tradução de Confissão de um Filho do Século de Musset, pouco encontrei. Há algumas referências esparsas a seu nome ao longo dos anos, e nenhuma referência a qualquer outra tradução. 

Mais fértil se revelou a pesquisa sobre Vida Nova, de Dante, que a Athena publicou em 1937, acrescida de um prefácio de Antonio Piccarolo, um dos líderes do antifascismo italiano no Brasil. A tradução foi feita a quatro mãos, assinada por Paulo M. de Oliveira e o improvável “Blasio Demétrio”. E aqui mostra-se de fundamental importância o documento que me foi gentilmente encaminhado por Paula Abramo: uma cópia da carta que seu avô Fúlvio Abramo, destacado militante trotskista, escrevera à família quando se encontrava na prisão, num de seus encarceramentos entre 1934 e 1935. Dizia ele: “Estou trabalhando na tradução para o português da ‘Vida Nova’ de Dante, juntamente com outro preso. O trabalho está quase no fim, e do resultado econômico que obtiver, mandarei à senhora e ao maninho a maior parte”.

pic.twitter.com/rDBMZhaE
Cópia da carta de Fúlvio Abramo, cedida pela neta Paula Abramo.

As ligações entre os movimentos antifascistas e o trotskismo brasileiro são bastante conhecidas, e materiais de pesquisa não faltam. O interessante é notar essa relação ativa entre a Athena de Pasquale Petraccone e os perseguidos e presos políticos, militantes sobretudo trotskistas na linha de frente contra o fascismo brasileiro. Assim também se entende melhor a presença de, por exemplo, Lívio Xavier e Victor de Azevedo entre os tradutores da casa.

Essa descoberta – a saber, que Blasio Demétrio foi o pseudônimo que Fúlvio Abramo usou em sua tradução de Vida Nova feita no cárcere – oferece um exemplo concreto do riquíssimo painel das contribuições da militância de esquerda na história cultural brasileira, ainda a ser explorado por um trabalho sistemático de pesquisa.


IV.

Voltemos a Paulo M. de Oliveira. Sabemos que Vida Nova saiu pela Athena com tradução em seu nome e no de Blasio Demétrio. Sabemos agora que este último foi o pseudônimo que Fúlvio Abramo adotou (ou que a editora adotou por ele) para assinar sua tradução. E sabemos também que ele a fez “juntamente com outro preso”.

Em vista da nulidade de meus esforços em encontrar qualquer referência a Paulo M. de Oliveira a não ser como tradutor, e ainda por cima de produção restrita ao período de 1935 a 1939; em vista do luminosíssimo detalhe relatado por Fúlvio Abramo (“juntamente com outro preso”); em vista do pseudônimo usado por este último para assinar sua tradução; em suma, em vista desses vários aspectos, parecia muito plausível aventar que Paulo M. de Oliveira fosse também um pseudônimo usado por um militante preso na mesma época de Fúlvio Abramo, talvez até companheiro de luta ou de partido.

E assim é que, entre algumas elucubrações (cheguei a pensar em Lívio Xavier!), vários ziguezagues entre textos sobre a esquerda brasileira e rastreamentos de edições separadas por algumas décadas de intervalo, despontou uma hipótese que parecia bastante promissora: quem sabe Paulo M. de Oliveira não seria o nom de plume de ninguém menos que Aristides Lobo…

A partir de tal hipótese, vários indícios avulsos passaram a convergir para essa direção: um Gargântua de Aristides Lobo pela Atena em 1957; uma posterior descoberta fortuita de um Gargântua de Paulo M. de Oliveira pela Athena em 1936; A Cidade do Sol de Campanella, em tradução de Aristides pela Tecnoprint (futura Ediouro, e que absorvera o catálogo da Atena após o encerramento de suas atividades), repetindo a de Paulo M. de Oliveira pela Athena; um pequeno detalhe sugestivo, comentado por um leitor no blog Não Gosto de Plágio, a saber, que o tio materno de Aristides era o poeta Alberto de Oliveira… Ademais, acompanhando a cronologia de suas prisões, via-se que ela coincidia com o período tão concentrado das traduções de Paulo M. de Oliveira, publicadas entre 1935 e 1939 (considerando-se um prazo de mais ou menos um ano entre a entrega do material e a publicação do livro). Por fim, o coroamento: a generosa iniciativa de Paula Abramo em consultar o historiador Dainis Karepovs, profundo conhecedor da história da esquerda brasileira, que confirmou a procedência da hipótese – sim, Aristides Lobo efetivamente usava o pseudônimo de Paulo M. de Oliveira. E assim foi possível extrair a conclusão: as traduções publicadas pela Athena entre 1935 e 1939 sob o nome de Paulo M. de Oliveira foram feitas por Aristides Lobo, durante os vários períodos que passou no cárcere sob o Estado Novo. 

Diga-se de passagem que foi Evaristo de Moraes – aliás, com suas obras Cárceres e Fogueiras da Inquisição e Da Monarquia para a República publicadas pela mesma Athena – quem, em 1938, apelou da sentença do Tribunal de Segurança Nacional e obteve a absolvição, dentre outros, do não mais misterioso “Paulo M. de Oliveira” e de Pasquale Petraccone, o fundador e proprietário da Athena Editora.


V.

Uma observação final: é lamentável, mas não muito surpreendente, que a Editora Martin Claret não tenha mostrado maiores escrúpulos em se apropriar desse antigo trabalho de Fúlvio Abramo e Aristides Lobo e em publicá-lo desde 2003 em sucessivas reedições, atribuindo sua autoria a um tal “Jean Melville” e arrogando-se o copyright dessa tradução tão carregada de história. 

Mais uma forte razão para um urgente levantamento das contribuições da esquerda brasileira para a constituição de nosso acervo traduzido de obras de importância mundial, antes que tais contribuições acabem de cair no esquecimento.

Referências bibliográficas

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