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Zara Gerhardt: Memórias emprestadas: a gripe espanhola
Zara de Araújo Vianna GerhardtMarço de 2020 Nestes dias de coronavírus, ex-fumante e na faixa etária daqueles que o vírus gosta de levar, na minha auto-imposta quarentena, resolvi pesquisar e organizar diversas gavetas e escaninhos, tanto físicos quanto mentais. Na gaveta das fotos de família, herdadas por ser conhecida como aquela-que-gosta-de-velharias, encontrei uma foto, datada de primeiro de novembro de 1918, que me impressionou: meus bisavôs maternos, três filhos e três netos no alpendre da casa de Cachoeira do Sul. A foto não parecia ser muito formal, apesar do meu bisavô e seu filho mais moço usarem terno e gravata. Minha bisavó e as duas filhas tinham os cabelos informalmente presos, e uma das retratadas, minha tia-avó Vicência, estava grávida. Seus três filhos, de dois anos e meio, um ano e meio e seis meses, estavam sentados no parapeito do alpendre, seguros pela mãe e tios. A foto fez com que eu me lembrasse da história, muitas vezes contada pela minha avó, sobre a morte da irmã mais velha. A tranquilidade da família retratada sugeria que eles não estavam cientes da tempestade que se avizinhava: a gripe espanhola que grassava na Europa desde março daquele ano, e que mataria 25% da população europeia, havia recém chegado ao Rio Grande do Sul. Na Europa, ela havia se originado nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, e se disseminado através dos soldados ao voltar para seus países de origem, em 1918. Chegando às suas pátrias exauridas pela guerra, desnutridos e doentes, os soldados fizeram com que a gripe se espalhasse como fogo num rastilho de pólvora. No Brasil ela chegou com o navio Demerara, que aportou em setembro no Recife, Salvador e Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, a porta de entrada foi o porto de Rio Grande, em 10 de outubro, onde atracaram os navios Itajubá e Itaquera, com suas tripulações infectadas. Ao longo das estradas de ferro, a gripe espanhola se espalhou no Rio Grande do Sul, matando 12.800 pessoas nos três últimos meses de 1918. Uma destas pessoas foi minha tia-avó Vicência. Apesar da tranquilidade aparente, vô Miguel e vó Chiquinha acompanhavam com preocupação as notícias alarmantes sobre a epidemia, por meio dos jornais que noticiaram a chegada dos primeiros infectados no porto de Rio Grande. Quando Vicência apresentou os primeiros sintomas de gripe, a família, tomada por grande pesar, tratou de acomodá-la num quarto isolado na casa dos pais. Foi assistida exclusivamente pela mãe, para evitar o contágio. Em uma semana, o que parecia ser uma gripe comum se transformou numa doença gravíssima. A falta de ar, a febre alta e a pele azulada foram suficientes para que fosse diagnosticada com a gripe espanhola. Sem antibióticos, na época, de nada serviram os medicamentos prescritos pelo médico e aviados na farmácia do pai. Vicência delirava de febre e suplicava à mãe que cuidasse dos seus filhos, pois o marido enfermo não teria condições de criá-los. Despediu-se dos filhos à distância, através dos vidros da porta do quarto. No […]