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Visita à Fortaleza Solidão de Gelson Radaelli

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Visita à Fortaleza Solidão de Gelson Radaelli Foto: Carina Dias/Arquivo Pessoal

A imagem acima registra um dos episódios mais memoráveis para mim do Curso de Especialização em Práticas Curatoriais: a visita ao ateliê de Gelson Radaelli, no dia 18 de maio de 2019, comandada pelo professor Eduardo Veras, um dos ministrantes da disciplina Contato com Artistas. A foto, feita pela atriz e produtora Carina Dias – e minha colega na primeira turma do curso lato sensu promovido pelo Instituto de Artes da UFRGS –, captura um dos muitos momentos inesquecíveis daquela manhã, escutando ao lado do mestre Veras o artista visual falar sobre seu trabalho.

A morte de Radaelli na madrugada deste sábado (28/11) me tirou o chão. A perda desse grande artista, restaurateur e antes de tudo amigo é inaceitável. Ruminando lembranças e tentando elaborar o baque, me dei conta de que, mesmo não sendo seu íntimo, Radaelli e seu Atelier de Massas – o melhor restaurante de massas da capital gaúcha e o meu mais querido de todos – são responsáveis por muitas alegrias na minha existência há quase três décadas. Ponto de encontro de artistas, intelectuais e apreciadores da boa gastronomia, o restaurante na Rua Riachuelo faz parte da minha história: sempre fui lá com pessoas que amo e admiro para celebrar à mesa com elas a amizade, o encontro, a arte, o prazer, a vida. Uma relação afetiva em progresso: ainda nesta semana, depois de fazermos mais um pedido de jantar em casa, comentávamos eu e minha esposa que, apesar de clientes há tantos anos, ainda não tínhamos conseguido experimentar todo o cardápio do Atelier.

Pois bem, lembrei então hoje daquele encontro que eu e vinte e tantos colegas do curso de formação de curadores tivemos com Gelson Radaelli em seu ateliê. Como trabalho de conclusão da disciplina, escrevi na época um texto relatando aquela rica conversa. Reproduzo aqui a crônica dessa aula de dedicação à arte e exercício de empatia como forma de compartilhar um pouco do sentimento que esse gringo tão talentoso, amoroso e já saudoso provoca em mim.

Roger Lerina/Arquivo Pessoal

GELSON RADAELLI: VISITA AO ATELIÊ DE UM ARTISTA MUITO FAMOSO

É curioso perceber como a mística do ateliê de artista resiste ainda hoje à dessacralização e à trivialização, mesmo quando o próprio espaço contribui eloquentemente para sua banalização. A primeira visita da disciplina Contato com Artistas a esses locais de natureza ambígua foi ao ateliê do pintor Gelson Radaelli, na manhã do dia 18 de maio de 2019. Situado em um apartamento de um edifício no Centro Histórico de Porto Alegre, o espaço fica a poucos metros do Atelier de Massas, tradicional restaurante do qual Radaelli é proprietário.

Conheço pessoalmente o artista há quase 30 anos, frequento assiduamente seu restaurante, tenho dois trabalhos dele em casa – nunca, porém, tinha visitado seu ateliê. Foi, portanto, com um misto de alguma familiaridade e muita curiosidade que adentrei no lugar de trabalho desse criador que se mantém um enigma para mim, apesar da relativa proximidade que temos um com o outro. Em geral sério e de semblante severo, Radaelli é muitas vezes visto equivocadamente como um sujeito mal humorado. Ainda que de fato cultive folcloricamente essa imagem dura, o artista na verdade é generoso e afável, cuja figura sisuda é talvez decorrência de certa franqueza no trato característica de muitos originários de lugares pequenos – Radaelli nasceu em Nova Bréscia, cidade de colonização italiana do interior gaúcho, em 1960. Fomos recebidos então por esse gringo de gestos despachados em seu sanctum sanctorum – como eu supunha, reflexo das características de seu ocupante: um apartamento cujos cômodos estão todos ocupados sem muita ordem por livros, desenhos, telas, CDs, tintas, revistas, jornais, pinturas. E vinhos: como em seu restaurante, cujos cantos e paredes acumulam pilhas de garrafas, Radaelli também transformou seu ateliê em adega, onde guarda dezenas de rótulos da bebida que tanto aprecia.

“O que mais me move é a solidão. Eu chamava meu antigo ateliê de Fortaleza Solidão. Aqui eu posso chorar, me isolar”, confessou-nos surpreendentemente o criador, em pé na sala de seu apartamento no coração da metrópole, atulhado de objetos e referências, em nada convidativo à reflexão e à contemplação. Ainda assim, o ateliê está lá em meio ao caos urbano com sua aura indelével – espaço, coisas e criador em sintonia intrínseca, emanando em conjunto uma mensagem de clareza cristalina: “aqui se faz arte”. Participando de exposições desde 1982, nome reconhecido e premiado no sistema das artes local, Radaelli abriu seus arquivos para a turma: pastas, caixas e gavetas cheias de desenhos e pinturas, que eram espalhados um após o outro pelo chão e pelas mesas, criando uma narrativa dinâmica, resumida e relativamente cronológica de sua trajetória artística – desde esboços e rabiscos do tempo de criança até trabalhos produzidos naquela semana mesmo, passando pelas pinceladas em preto e branco com que interferia em páginas de revistas quando trabalhava em agência de publicidade no começo da carreira, estudos de figura humana, composições abstratas, retratos e autorretratos.

Roger Lerina/Arquivo Pessoal

Ex-aluno de Fernando Baril, representado no mercado por uma conceituada galeria de arte contemporânea brasileira – a Bolsa de Arte de Porto Alegre –, Gelson Radaelli desenvolveu uma trajetória pictórica ligada ao neo-expressionismo, com um trabalho inicialmente mais figurativo e que nos últimos anos vem acolhendo com mais recorrência o abstracionismo. Sua obra dialoga tanto com referências internacionais como os alemães Anselm Kiefer e Gerhard Richter quanto com artistas próximos como a também gaúcha Karin Lambrecht. Conversando com os alunos, Radaelli lembra que desde muito cedo já queria ser pintor: “Minha lembrança mais antiga é de estar no colo do meu pai e ele desenhando comigo. Quando eu era criança já me sentia artista. Eu achava que seria um grande artista como Picasso. Não sabia que o mundo era grande…”. O desejo precoce de ser artista, surgido entre os seis e sete anos, já tinha inclusive tendência estilística definida: “Eu nasci expressionista. Na sala onde minha mãe cortava cabelo, havia reproduções de pinturas nas paredes, como a Noite Estrelada, de Van Gogh. Era tudo quadro expressionista”.

Natural que esse expressionista praticamente nato tivesse como grande ídolo Iberê Camargo (1914 – 1994). “O Iberê era a pessoa mais importante do mundo pra mim. Conviver com ele foi simplesmente incrível. Tinha uma época em que eu pintava pensando em como o Iberê iria pintar a mesma coisa”, revelou Radaelli. Certamente por conta de influências como a do mestre de Restinga Seca, a obra do artista é caracterizada por uma pintura gestual, em que as pinceladas largas e ágeis sobrepõem-se em empastelamentos, explorando uma paleta de cores concentrada em geral em tons de preto, branco, cinza e azul – mas que, a partir da exposição individual NEON, exibida no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs) entre 26 de julho e 10 de setembro de 2017, ganhou o acréscimo inusitado de vivazes matizes de rosa. “Gosto quando sofro com a pintura”, definiu diante de sua plateia de visitantes o expressionista, em mais uma declaração dramática que alimenta o célebre mito romântico do artista atormentado.

Roger Lerina/Arquivo Pessoal

Radaelli ainda mostrou uma parte de seus novos trabalhos, nos quais exercita-se na paisagem – gênero até então pouco representativo em sua obra. Comentando com os alunos do curso a respeito de sua relação com os processos da pintura e os materiais que utiliza, o artista foi taxativo: “A química da pintura não me interessa. O que me interessa é a expressão”. Fechando a excursão à “Fortaleza Solidão” de Radaelli, o artista convidou o grupo a conhecer um espaço que mantém vizinho ao ateliê, na mesma Avenida Salgado Filho, onde abriga uma espécie de reserva técnica de seus quadros – além, claro, de mais uma infinidade de garrafas de vinho. O local foi a sede do Margs durante quase toda a década de 1970 e difere em tudo do seu ateliê-apartamento abarrotado de objetos: amplo, generosamente banhado pela luz natural, configura-se como o típico “cubo branco” de galeria de arte, onde as telas de grandes dimensões de Radaelli escoram-se umas nas outras junto às paredes – muitas vezes de maneira pouco cuidada –, como que à espera de serem penduradas em exposição. Entre os quadros espalhados pelo chão nessa espécie de retrospectiva informal, há pinturas de todas as épocas de sua carreira – inclusive um autorretrato exibido na primeira exposição individual do então iniciante pintor, no final dos anos 1980, que tem o título irônico de Retrato de um Artista Não Muito Famoso.

“Retrato de um Artista Não Muito Famoso”. Roger Lerina/Arquivo Pessoal

Antes de finalizar a visita em um brinde coletivo com um espumante que leva seu nome no rótulo – a manhã realmente foi uma celebração –, Radaelli ainda comentou a respeito da importância da figura do curador: “Meu trabalho certamente tem muita coisa que eu não sei e gostaria de saber. Um curador me ajuda a descobrir isso”. Ao mesmo tempo revelador e mistificador, esclarecedor e reticente, o encontro com Gelson Radaelli em seu habitat artístico foi uma ilustração da definição de ateliê da pesquisadora Marisa Flórido Cesar: “(…) um entre, uma trama que articula e confunde os universos que deveria delimitar: um intervalo e um trânsito entre o sagrado e o profano, a arte e a vida, a arte e o mundo, o íntimo e o público, o centro e a periferia. O ateliê é uma moldura habitável”.

Roger Lerina/Arquivo Pessoal
Roger Lerina/Arquivo Pessoal
Roger Lerina/Arquivo Pessoal

Roger Lerina/Arquivo Pessoal
Roger Lerina/Arquivo Pessoal
Roger Lerina/Arquivo Pessoal
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