Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

A Rainha

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A Rainha Foto: Netflix/Divulgação

Não, não aquela rainha, que já está na quarta temporada na Netflix e na septuagésima na vida real – real, sacam? A outra rainha. A que nos olha do lado de lá da tela e todos trememos do nosso ladinho aqui. Essa rainha do gambito, o que quer que seja um gambito. Essa rainha. Ela.

Eu sempre gostei de xadrez, e nunca jamais pensei em assistir a um filme, ou série, sobre xadrez que segurasse o espectador mais do que alguns minutos antes de ele entrar em coma induzido.

Quem vê O Gambito da Rainha, também na Netflix, adere à monarquia no instante em que começa a assistir, e a rainha de nossos corações e mentes é ela, Beth Harmon, a garota que resolve ser campeã mundial no mais difícil e masculino de todos os embates, com exceção de arremesso de troncos, creio. Na verdade, ela é brilhantemente criada por Anya Taylor-Joy – e bota Joy nisso, de longe a melhor atriz que eu jamais tinha visto antes, caramba.
The Queen’s Gambit é uma série de rainhas: Beth, a mãe adotiva e embriagada, mas cúmplice, e Jolene, a colega de orfanato que cumpre a pena até o final por ser negra no Kentucky dos anos 1960, e ainda assim preserva a força, e a alma.

Nessa série feita de mulheres e do feminino, quem joga Beth no seu inferno inicial é a mãe, matermática, mas não mãe, que decide resolver o problema da vida zerando-a. Beth escapa viva, mas em um orfanato, onde a vida é a que é possível, e as crianças são mantidas tranquilas e dopadas, o que aparentemente era possível na época.

O que salva Beth de sua mãe é o que ela descobre no porão do orfanato. Não um buraco escuro e assustador, mas um lugar de humanidade, onde o zelador joga xadrez, e a pequena Beth, aos nove anos, começa a ser o que vai ser. O zelador a leva até onde ele pode levar, porque Beth tem nove anos, mas é gênio, e abre o caminho para ela ir além. Uma das tristezas da série é que Beth somente vai descobrir o que ela significou para ele quando já é tarde demais. Um pena.

A trajetória de Beth é a das meninas órfãs que têm a sorte de serem adotadas – no caso dela, não com muito amor, mas com espaço próprio, um quarto todo seu e possibilidades de ir lá fora e vencer.

Beth descobre que até agora andou perdendo muito, que a vida não ajudou em quase nada, mas que ela pode vencer, e que ela gosta de vencer.
Essa é talvez a maior descoberta da série, ou do livro que deu origem a ela. Meninas são fortes, muito fortes, e gostam de vencer, especialmente em áreas onde a força física não seja um diferencial e a força emocional e mental, sim. Beth tem força de sobra, mesmo que em paralelo mantenha uma relação próxima com garrafas e pílulas, o que poderia atrapalhar a vida de um campeão de xadrez, não fosse ela quem ela é.

Beth é a mais bela e forte menina e jovem mulher que o mundo já conheceu, e ele vai descobrir do que ela é capaz no palco nobre e limpo do xadrez mundial, do mais alto nível, do xadrez construído por alguns dos maiores cérebros que a humanidade já conheceu. Beth é, sim, um desses cérebros, e nada vai tirá-la do caminho que escolheu, nem mesmo ela e seus momentos de perda. Beth é humana, e perde. Mas ela é Beth Haron, uma campeã, e vence a tudo, mais especificamente a si mesma e a todo o azar que teve para começo de conversa.

Um dos encantos da série está guardado para o final, e ele nos mostra com quem Beth prefere estar e festejar as suas conquistas, quando pode escolher. Pessoas como ela, que não tiveram facilidade alguma, que não fazem o que fazem por dinheiro, por fama ou por troféus, e que simplesmente fazem porque gostam.

Beth é a maior personagem dos últimos tempos e, não por acaso, é mulher.

Não percam.

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