Artigos | Marcelo Carneiro da Cunha | Série

“Shameless”

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“Shameless” Foto: Netflix/Divulgação

Vergonha é um luxo, e um luxo para quem tem tempo, algum dinheiro, e um certo tipo de sensibilidade. Para a família sem-vergonha dos Gallagher, por exemplo, esse é um luxo a que eles não poderiam se permitir, caso sentissem alguma vontade de sentir vergonha do que são. Não sentem, e essa é boa parte da graça de Shameless.

A mãe desapareceu, o pai bebe em boa parte do tempo em que está acordado, e os seis filhos precisam dar conta de si mesmos, e do pai. Por incrível que pareça, existe amor, existe solidariedade e um certo funcionamento disfuncional que nos faz quase, quase mesmo, sentir vontade de ser um Gallagher de vez em quando. Porque, se falta praticamente tudo, não há tédio no universo bebum dos Gallagher, isso é certo.

Eles vivem em Manchester, mais especificamente em Chatsworth Estate, um daqueles conjuntos habitacionais ingleses que dão vergonha da incapacidade estatal de criar arquitetura dotada de vida. Vivem, ou melhor, se viram. Frank Gallagher, o patriarca, se se pode acusar Frank de alguma forma de paternidade, acredita que as crianças precisam desenvolver a sua autonomia o mais rapidamente possível, o que, no caso dos Gallagher, pode ser a primeira hora de vida extra-uterina.

Com tudo isso, Shameless é uma comédia, na qual rimos da vida como ela não deveria ser, por sabermos que ela pode ter lá os seus momentos em que desafios acabam superados por conta da recusa humana em desistir diante de obstáculos, especialmente quando não se conhece muito da vida e, portanto, tende a achar que mesmo os Gallagher podem experimentar uma forma de felicidade. É possível, mesmo que não provável. A falta de posses e de genitores pode ser substituída por outras formas de riqueza, dizem.

Manchester tem o United e o City, e um ambiente materialmente empobrecido e culturalmente intenso, da classe trabalhadora que inventou a vida industrial. É ali que vamos passar as seis temporadas disponíveis na Netflix, enquanto a filha mais velha, Fiona, dá um jeito de manter a família unida e operando, enquanto Frank bebe umas por aí, e outras também.

Os americanos criaram a sua versão de Shameless, e apenas por podermos ver William H. Macy no papel de Frank já vale o ingresso. Esse que vos atormenta com essas mal traçadas, no entanto, segue fiel às origens e à versão original. Humor com cor e cheiro de carvão é com os ingleses mesmo. Vale pro The Office, vale pra Shameless.

Veja com aquela sensação esquisita de constrangimento com a vergonha alheia o tempo todo. Veja com rubor e contendo o riso pra não parecer que você é tão sem vergonha quanto eles. Mas veja, e sinta. Vale a pena.

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