Fotografia | Reportagens

“Ser Trans”, de Gabz 404: corpos, palavras e imagens urgentes

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“Ser Trans”, de Gabz 404: corpos, palavras e imagens urgentes Duda Steiger, Porto Alegre (RS), outubro de 2021. Foto: Gabz 404

O projeto fotográfico Ser Trans, do artista porto-alegrense Gabz 404, nasce de urgências individuais e coletivas que encontraram na arte um espaço de expressão, troca e representação. A série, idealizada a partir de 2020, já reúne retratos e depoimentos de 25 pessoas trans, travestis e não binárias de mais de dez cidades do país, revelando um espectro diverso de corpos, experiências e narrativas.

Gabz 404. Foto: Lau Baldo

No manifesto do projeto, Gabz explica que Ser Trans “nasceu do cansaço de tabelas de passabilidade, checklists para saber se você está sendo trans ‘do jeito certo’, da busca constante por feridas na infância para explicar a própria existência, como se existir dessa forma fosse doentio”.

Ser Trans nasceu também do amor. Do encontro. Entre um eu e um espelho, um corpo no mundo, uma voz, um outro indivíduo, um coletivo. Uma comunidade. Nasceu do prazer de se sentir completo e pertencente. De finalmente ouvir sua voz e se reconhecer. De olhar em volta e ver outros corpos e corpas ocupando espaço. Nasceu do brilho no olho dos dias felizes. Nasceu do momento em que se percebe que se é”, completa o artista no texto que apresenta a série.

Tainã Ribeiro, Capão do Leão (RS), novembro de 2021. Foto: Gabz 404

Hoje com 30 anos, Gabz viveu em Porto Alegre desde a infância até 2017, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, conheceu profissionais do setor audiovisual e cursou um semestre de Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. A formação acabou sendo interrompida devido à dedicação de Gabz a trabalhos que começaram a surgir.

“Comprei uma câmera usada de uma amiga e comecei a levar para tudo quanto era canto, fazendo fotos e vídeos de amigues no rolê. Em 2018 e parte de 2019, fotografava e filmava migues, festas, manifestações e fui aprendendo sozinho a editar vídeos”, relembra.

Em 2019, o artista recebeu uma bolsa para participar do programa de verão Creative Liberation, com foco em dança e liderança, promovido pela entidade Golden Bridge, na cidade de Boulder, Colorado, nos EUA. “Aquilo me mudou. Pude refletir muito sobre quem eu era e o que queria para o meu futuro.” Pouco depois, numa parceria com a astróloga Renee Sills, Gabz começou a fotografar corpos de pessoas, o que lhe despertou o interesse por retratos.

“No meio disso tudo, também estava passando pelo processo de me perceber uma pessoa trans, então comecei a fazer autorretratos para me entender, tentar expressar o que estava sentindo e documentar minhas mudanças. A partir de todos esses processos, nasce o Ser Trans”, explica o artista, que voltou a morar em Porto Alegre e hoje desenvolve o projeto ao lado de outras três pessoas trans: Lau Graef (responsável pelas transcrições dos relatos), Luka Machado (redes sociais) e Morgan Lemes (assistente de fotografia).

Idris, Santa Maria (RS), outubro de 2021. Foto: Gabz 404

Gabz conta que, ao pesquisar sobre transgeneridade, encontrava sobretudo relatos de preconceito, o que acabou motivando uma busca por outros tipos de narrativa. “A gente sabe que a violência é uma parte do nosso existir, porque muitas políticas nos invalidam, muitas pessoas e instituições nos reprimem, nos agridem, nos matam. No fundo, eu sabia que não era só isso, mas não encontrava referências sobre outras possibilidades não cis, normativas e binárias de existir.”

Os questionamentos o aproximaram de outros seres trans e suas histórias. A partir dessas trocas, o projeto fotográfico em gestação ganhou o componente textual dos relatos das pessoas retratadas.

“Isso foi um pouco antes de a pandemia começar, no início de 2020. Quatro meses depois, em maio, peguei de novo esse material, estudei bem, transcrevi as entrevistas e me gravei falando sobre o que eu queria fazer. Percebi que falava muitas vezes sobre ‘ser trans’ e foi assim que nasceu o nome e o manifesto. Voltei a fotografar em outubro daquele ano, quando se tornou um pouco mais seguro ver as pessoas. E não parei mais.”

Danna Nunes, Bagé (RS), novembro de 2021. Foto: Gabz 404

Os 10 ensaios mais recentes do projeto foram viabilizados com recursos oriundos do edital “Eu Sou Respeito”, fruto do Termo de Compromisso Consensual celebrado pelo Ministério Público Federal do RS com o Santander Cultural por conta do encerramento antecipado da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença Brasileira, em 2017. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a mostra foi cancelada após acusações de que promoveria blasfêmia a símbolos religiosos e apologia à zoofilia e à pedofilia – o episódio integra a lista de casos compilados pelo Observatório de Censura à Arte, criado pelo site Nonada.

Na etapa desenvolvida ao longo dos últimos meses, Gabz retratou pessoas trans, travestis e não binárias de oito cidades do RS: Bagé, Bento Gonçalves, Capão do Leão, Caxias do Sul, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santa Maria e Rio Grande. As imagens e entrevistas somaram-se a fotos e relatos anteriores obtidos em Bom Princípio, Montenegro, Nova Hamburgo e Três Coroas – no RS – e nas cidades fluminenses de Duque de Caxias, Niterói e Rio de Janeiro.

Zion Alves, Caxias do Sul (RS), agosto de 2021. Foto: Gabz 404

“Acho que o único ponto que realmente liga todas essas pessoas é que elas são trans – e aqui uso como um termo guarda-chuva, incluindo travestis e pessoas não binárias. Existem outros recortes de raça, sexualidade, classe, localização, idade e, inclusive, dentro do próprio gênero, que mudam muito a vivência de cada uma”, conta o artista, que percebeu, a partir dos relatos, o “autorreconhecimento e acolhimento um pouco mais rápido” das pessoas trans que vivem em cidades de maior porte.

As imagens do projeto apresentam rostos e corpos de pessoas trans em espaços onde elas se sentem à vontade. “Priorizo que seja a casa delas, mas nem sempre há condições para isso. A gente está falando de pessoas que muitas vezes moram com familiares e não são respeitadas nem se sentem confortáveis em casa. Daí a gente busca algum outro lugar que tenha esse significado de lar ou identificação”, explica Gabz.

Esteve Maris, Rio Grande (RS), novembro de 2021. Foto: Gabz 404

O artista conta que, a partir da urgência de contato com outras experiências trans, um dos objetivos iniciais do projeto, passou a sentir mais confiança em performar sua identidade: “Eu amo meu nome: Gabrielle. É meu nome de registro, que quero continuar usando”.

“Tinha muita dificuldade em, junto a tudo isso, me sentir livre para usar elementos ditos ‘femininos’, como maquiagem, esmalte, brincos, cropped, body. Tudo que eu via e lia me contava a mesma história de que, para ser trans, tinha que me odiar, sentir nojo ao olhar no espelho, não poder usar meu nome de registro, que eu tinha que ir para o oposto de um padrão binário”, completa Gabz, ressaltando que não se identifica com a demanda, igualmente legítima, de adotar um novo nome e gênero binário.

Elias Oliveira dos Santos, Santa Cruz do Sul (RS), outubro de 2021. Foto: Gabz 404

Atualmente, Gabz estuda a possiblidade de apresentar o projeto em espaços expositivos. “Desejo muito que esses corpos sejam representados e essas histórias sejam contadas também nesses lugares que, historicamente, são de exclusão para a gente. Também pode ser um caminho para financiar o projeto e torná-lo mais conhecido.”

Ser Trans é desenvolvido por meio de recursos próprios da equipe que lidera a proposta, pela verba oriunda do termo celebrado pelo MPF-RS, por doações (PIX [email protected]), por uma parceria com o laboratório fotográfico Lab:Lab e através da plataforma Catarse – por meio de um sistema de recompensas que antecipa conteúdos aos assinantes. Também é possível adquirir impressões de fotografias no site do projeto.

Gabz 404 é também codiretor e coprodutor do longa INTRANSITIVO: Um Documentário sobre Narrativas Trans, ao lado de Gustavo Deon, Lau Graef e Luka Machado. “Somos quatro pessoas trans fazendo um documentário sobre outras oito pessoas trans”, destaca o artista.

Leia também as entrevistas com Cha Dafol e Viridiana, publicadas em nosso site.

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