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Desigualdade racial e de gênero afeta emprego e renda na economia criativa, aponta estudo

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Desigualdade racial e de gênero afeta emprego e renda na economia criativa, aponta estudo Cerimônia de posse da ministra da Cultura, Margareth Menezes. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Após quatro anos de desmonte do setor cultural pelo antigo governo federal, o ano de 2023 começa com a refundação do Ministério da Cultura (MinC), liderado pela cantora Margareth Menezes. Em seu discurso de posse, em 2 de janeiro, a ministra ressaltou suas raízes afro-indígenas e afirmou: “Ao longo dos meus 35 anos de carreira ininterrupta, sofri na pele as dores da memória da escravidão e os golpes do racismo estrutural”.

Ao assumir o cargo, Menezes também destacou os segmentos da população com os quais o MinC pretende se conectar com maior ênfase: “vamos construir pontes que nos levarão a um futuro mais justo para os artistas e cidadãos brasileiros em geral, especialmente os jovens, mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, periféricos, isolados, anônimos de multidão, todos eles e elas portadores de direitos culturais como direitos humanos da expressão e fruição simbólica”.

A necessária implementação de políticas que materializem essa visão de diversidade e inclusão ganha evidência no mais recente levantamento do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Entre outros recortes do estudo completo, a pesquisa apresenta um panorama da participação e remuneração de trabalhadores da economia criativa no que diz respeito a raça/cor e gênero.

O painel tem como base a PNAD Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre os terceiros trimestres de 2021 e 2022, e analisa um conjunto amplo de atividades que integram a economia criativa, conforme os critérios elaborados pelo Observatório: moda; atividades artesanais; editorial; cinema, música, fotografia, rádio e TV; gastronomia; tecnologia da informação; arquitetura; publicidade e serviços empresariais; design; artes cênicas e artes visuais; museus e patrimônio.

Segundo o painel, 58% dos trabalhadores da economia criativa se autodeclaram brancos, 32% pardos, 8% pretos e 2% de outros grupos, como amarelos e indígenas.

Em relação ao estrato de menor porcentagem, Vera Kaingáng, integrante do Conselho Estadual de Cultura do RS apontou a urgência do reconhecimento, da valorização e da promoção da cultura dos povos originários, em entrevista concedida ao Matinal: “A implementação de políticas de reparação, compensação e/ou ações afirmativas para povos indígenas constitui importante via à redução dos impactos perpetrados à cultura dos nossos povos em decorrência da expropriação e desterritorialização dos territórios tradicionais”.

O agregado de aproximadamente 40% de pessoas negras (pretos e pardos) informado pelo estudo se revela inferior aos 56% de cidadãos brasileiros com 10 anos ou mais que, conforme o IBGE (2021), se declaram pretos ou pardos. O percentual de negros na economia criativa também é inferior ao observado na economia brasileira como um todo, que reúne 54% de trabalhadores pretos e pardos, ainda segundo o IBGE. “Os dados desagregados por raça/cor reforçam as desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira, assim como expresso pelas disparidades salariais no mercado de trabalho”, observa Jader Rosa, gerente do Observatório Itaú Cultural.

Entre os trabalhadores criativos, há maior participação de pretos (11%) e pardos (38%) nas ocupações definidas como culturais – atividades artesanais, artes cênicas e artes visuais, cinema, música, fotografia, rádio e tv e museus e patrimônio – do que nas demais ocupações criativas analisadas pelo estudo – arquitetura, design, editorial, gastronomia, moda, publicidade e serviços empresariais e tecnologia da informação –, nas quais pretos correspondem a 7% e pardos a 27%.

Segundo a pesquisa, no escopo da economia criativa, pardos e pretos têm maior participação em moda, atividades artesanais e artes cênicas e visuais. O único ponto na série histórica em que há maioria de pretos e pardos é na categoria de atividades artesanais (53%), no terceiro trimestre de 2022.

Desigualdade de representação se reflete na remuneração de pretos e pardos

O Painel de Dados aponta que, na economia criativa, todos os grupos raciais têm aumentado seus salários ao longo dos anos. No terceiro trimestre de 2022, a média geral dos trabalhadores do setor foi de R$ 3,8 mil, enquanto a economia brasileira como um todo apresentou média de R$ 2,7 mil. Entretanto, a análise racial de remuneração na economia criativa revela que pretos e pardos seguem recebendo saláriosmenores que os dos brancos.

“Tendo em vista que a economia criativa possui rendimento médio e grau de escolaridade superiores ao agregado do mercado de trabalho da economia brasileira, pode-se inferir que a superestrutura de desigualdades sociais do país acaba se sobressaindo no setor cultural e criativo, o qual emprega mão de obra mais qualificada em sua cadeia produtiva”, analisa Rosa.

Para fundamentar a interpretação relacionada ao ensino formal, o gerente do Observatório Itaú Cultural cita o estudo A Educação no Brasil: uma Perspectiva Internacional, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em parceria com a entidade Todos pela Educação. A pesquisa revela que, em 2018, 36% dos brancos estavam cursando graduação ou já estavam formados, enquanto entre os negros esse número era de 18%.

O artista visual Estêvão da Fontoura. Foto: Arquivo pessoal

Artista visual e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do RS, Estêvão da Fontoura destaca o papel de políticas afirmativas, como a Lei de Cotas, que completou 10 anos em 2022, para o crescimento do ingresso de pessoas não brancas em cursos de nível superior vinculados ao setor cultural, tendo como efeito uma participação maior dessa população em ocupações mais bem remuneradas.

“A universidade tem (ou deveria ter) vários compromissos na transformação deste quadro. O primeiro deles me parece que estamos começando a alcançar como resultado da política de cotas, que é o de formar mais pessoas negras: artistas, professoras e professores de arte, historiadoras e historiadores da arte, museólogas e museólogos, jornalistas, designers, enfim, profissionais que assumirão o protagonismo em áreas onde se possa dar visibilidade e garantir a representatividade negra no meio artístico e do ensino de arte”, defende Fontoura em entrevista à pesquisadora Gabriela Miola, publicada no Boletim Kultrun.

Remuneração de mulheres pretas e pardas é menor que a de mulheres e homens brancos

Segundo o Painel de Dados, no terceiro trimestre de 2022, enquanto homens brancos atuando na economia criativa tinham remuneração média de R$ 5,5 mil, homens pretos e pardos recebiam em média R$ 3,3 mil. Entre as mulheres brancas, a média ficou em R$ 3,4 mil, acima do valor médio recebido por mulheres pretas (R$ 2,2 mil) e pardas (R$ 1,8 mil). As diferenças salariais relacionadas a raça e gênero se mantêm ao longo de todo o período analisado.

Assessora de imprensa e produtora cultural, Silvia Abreu entende que, apesar dos avanços relacionados à presença de mulheres no mercado de trabalho, as diferenças persistem e se agravam com a interseccionalidade racial: “Se é fato que ser mulher impacta negativamente na renda obtida, também é verdade que pessoas negras estão sub-representadas em setores estratégicos da sociedade. Isso se deve ao racismo e ao machismo estrutural e estruturante do nosso país, que mantém e fomenta este sistema de desigualdades”.

A assessora de imprensa e produtora cultural Silvia Abreu. Foto: Arquivo pessoal

Abreu aponta uma responsabilidade conjunta de organizações, governos, empresas e instituições tanto na manutenção como nas possibilidades de mudança desse contexto. “Para essa transformação em direção à maior equidade de gênero e raça, é preciso que a sociedade brasileira esteja disposta a dialogar e a enfrentar, com maturidade, esse sistema garantidor de privilégios para poucos, em detrimento da escassez para muitos”, afirma.

Na visão de Abreu, embora seja uma responsabilidade compartilhada por diferentes esferas da sociedade, há um papel fundamental do Estado no combate às desigualdades e em sua atuação no setor cultural: “a Cultura tem um papel fundamental nessa transformação, na medida em que critica, provoca, questiona e desacomoda a estrutura social, corroborando para a superação dessas desigualdades”.

Na visão de Jader Rosa, do Observatório do Itaú Cultural, a posse de Margareth Menezes no MinC sinaliza um horizonte de atuação mais efetiva, inclusiva e transformadora dos órgãos culturais de Estado: “considerando-se a superestrutura de desigualdades sociais brasileiras, profundamente marcada por aspectos de raça e gênero, a nomeação de uma mulher negra como ministra do Ministério da Cultura prenuncia o resgate e consolidação do espaço de destaque e a retomada dos investimentos em um setor altamente dinâmico, diante do declínio da importância das indústrias tradicionais, com potencialidade para gerar emprego, inclusão social e desenvolvimento econômico”.

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