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“Parece que Piorou”: HQ de Bruna Maia descreve ciladas de uma geração

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“Parece que Piorou”: HQ de Bruna Maia descreve ciladas de uma geração A cartunista Bruna Maia. Foto: Maria Ribeiro

Imagine um homem e uma mulher nus, na cama, depois do sexo. “Eu sei que essa foi a primeira foda, meu pau ficou meia bomba, eu gozei em dois minutos e você nem chegou perto. Os últimos minutos provaram que eu sou um mala, mas acho importante deixar claro que eu não quero um relacionamento”, diz tranquilamente o homem a uma jovem atônita. Esse diálogo não costuma ser tão sincero na vida real, mas não torna a situação menos verdadeira. 

A capacidade de escrachar mensagens subliminares na linguagem dos quadrinhos explica o sucesso de Bruna Maia no Instagram, pavimentando a carreira meteórica da jornalista e cartunista gaúcha que lançou seu livro de estreia Parece que Piorou – Crônicas do Cansaço Existencial pela Companhia das Letras na última sexta-feira (21/8). Faz apenas três anos que Maia saltou do mundo do jornalismo financeiro para o mundo dos quadrinhos. 

Capa de “Parece que Piorou”. Foto: Divulgação/Cia das Letras

Apesar do pouco tempo de estrada, ela já acumula elogios de figuras de peso como Tati Bernardi, colunista da Folha de S. Paulo e autora de Depois a Louca Sou Eu e Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha. Bernardi postou uma foto do livro de Maia no Instagram, avisando: “Depois do meu, este é o melhor livro que vc pode comprar hj. Essa @estarmorta eh gênia demais”. Durante a campanha de pré-venda do livro – que ocupou o posto de mais vendido da categoria quadrinhos do site da Amazon –,  Maia fez uma série de lives com convidados especiais, entre eles a cartunista Laerte Coutinho e as escritoras Clara Averbuck e Camila Fremder .

Formada pela UFRGS, Maia passou pelo Grupo RBS, Canal Rural e TVE até ser selecionada para o trainee do Estadão, em 2010. Na capital paulista, trabalhou em veículos especializados em mercado financeiro antes de cair numa depressão profunda. Era 2017, e o psiquiatra sugeriu a Maia fazer algo com as mãos para não ficar ruminando pensamentos. Antes disso, confessa, “só fazia uns desenhos ainda mais feios do que os que de hoje”. Mas ela decidiu levar a sério a recomendação da terapeuta. Depois, uma amiga a estimulou a criar uma conta no Instagram para publicar os quadrinhos. Assim nasceu o perfil @estarmorta, que tem hoje mais de 77 mil seguidores.

“Não que eu quisesse morrer, eu só queria estar morta por um tempo. E quando eu fui criar o perfil eu não sabia que nome dar. Coloquei @estarmorta, e assim ficou”, contou. A depressão ficou sob controle (“estou super bem medicada, meu psiquiatra é ótimo”, brinca), e Maia ganhou fama nas redes. Muita gente se identificou com seus relatos de ansiedade misturados às frustrações no relacionamento com os homens, nas relações de trabalho e nas buscas inglórias pela paz de espírito – vários de seus quadrinhos fazem piada com a tentativa de explicar tudo que nos acontece com as influências dos signos. 

A cartunista Bruna Maia. Foto: Maria Ribeiro

Uma de suas postagens virou o zine Manual da Esposa Pós-Moderna, seu primeiro trabalho publicado fora do mundo virtual, em 2019. Nele, Maia trata das diversas pressões a que as mulheres estão submetidas, apesar do avanço do feminismo – a pressão para ser bonita, bem-sucedida, a esposa perfeita ou mesmo para embarcar em um relacionamento aberto. “É um trabalho do qual eu me orgulho muito. É um questionamento para você que está aí com a sua tatuagem de boceta no braço, um símbolo feminista tatuado, um cabelo azul, mas continua preparando o jantar para o seu namorado”, resume.

É a vez das mulheres

Na sua primeira obra lançada por uma editora, a gaúcha radicada há dez anos em São Paulo se soma a outras tantas mulheres que, aos poucos, estão invadindo o universo historicamente masculino dos quadrinhos. “Acho que já tem uma representatividade que não tinha de jeito nenhum há anos atrás”, diz Maia, lembrando que a Folha de S. Paulo tem hoje três mulheres de peso no seu time de cartunistas: Estela May, Chiquinha e Laerte

Mas a porta de entrada desta nova geração não é mais o jornal impresso, mas as redes sociais. As principais referências de Bruna Maia são ilustradoras que, como ela, começaram a fazer sucesso nas redes sociais. Uma delas é a norte-americana Julie Houts, definida pela Vogue “a ilustradora favorita do Instagram” ao satirizar o estereótipo da mulher moderna. Outra referência é a brasileira lovelove6, autora de uma série de quadrinhos sobre masturbação feminina, que deu origem ao livro Garota Siririca.

No final do ano passado, após entregar seu primeiro livro à editora, Maia decidiu largar o emprego em uma agência de notícias para se dedicar a cursos de desenho, pintura e roteiro. Para pagar as contas, no entanto, segue fazendo freelas como jornalista. “Não tenho uma paixão louca pelo jornalismo, mas se preciso de dinheiro trabalho sem problema nenhum. É muito difícil viver só de cartuns”, explica.

Graças aos cursos que faz trancada em seu apartamento em São Paulo durante a pandemia, Maia diz que suas ilustrações melhoraram. Ao mesmo tempo, se diverte com a ideia de que seu “desenho feio”, como ela mesma o define, é uma das fórmulas do sucesso. “É muito engraçado ver que chamar meu desenho de feio deixou de ser uma ofensa e passou a ser um elogio. Mas, no começo, não era uma escolha estética. Acho que as redes sociais estão cheias de coisas tão iguais, no mesmo padrão, que quando você coloca um traço mais toscão, chama atenção. Gera uma identificação na imperfeição”, reflete. 

Cartum de “Parece que Piorou”, de Bruna Maia. Foto: Divulgação/Cia das Letras

Em Parece que Piorou, Maia junta quadrinhos já publicados no Instagram a outros inéditos, divididos em seis temas: mente, corpo, trabalho, amizade, relacionamento e espiritualidade. A todos eles, impõe um mesmo olhar irônico, reflexo da sensação que dá nome à obra. “O livro fala muito dessa sensação da nossa geração de que estávamos no auge do capitalismo e da democracia liberal, e aí parece que piorou. De que você teria mais flexibilidade no trabalho e que seria incrível e maravilhoso, e daí você se depara com a realidade de que é tudo a mesma merda só que agora sem segurança nenhuma”, sintetiza. 

A autora tira sarro sobretudo dos homens – como fica claro no quadrinho descrito no início desta reportagem. Ela, que nunca quis ter um relacionamento tradicional, também se frustra constantemente nos formatos de relacionamento moderno. “Acho que a nossa geração romantizou essa história do relacionamento leve. Eu queria transar com muita gente e não me sentir presa a ninguém, e me deparei com um monte de homens transando mal e enchendo o saco”, conta a autora.

Cartum de “Parece que Piorou”, de Bruna Maia. Foto: Divulgação/Cia das Letras

Só há uma coisa que irrita Bruna Maia mais que um homem carente e ruim de cama: quando dizem que sua obra fala do “mundo feminino”. “Há anos, homens estão produzindo quadrinhos centrados na sua piroca e ninguém fala que eles estão fazendo quadrinhos de homem. Eu falo de coisas de mulher porque sou uma mulher dando sentido às experiências que eu vejo”, esclarece.

Para a gaúcha, o mercado cultural está começando a perceber o apelo comercial das narrativas femininas. Elena Ferrante se tornou o maior fenômeno literário dos  últimos tempos com uma tetralogia centrada na relação entre duas amigas, da infância à idade adulta. Já a série britânica Fleabag, estrelada pela atriz Phoebe Waller-Bridge, ganhou quatro Emmys ao contar a vida de uma mulher nem um pouco idealizada. No Brasil, o livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, da escritora pernambucana Martha Batalha, foi transposto para o cinema no filme A Vida Invisível, que abocanhou prêmios importantes nos festivais de Cannes, na França, de Valladolid, na Espanha, e de Gramado, no Rio Grande do Sul.

Cartum de “Parece que Piorou”, de Bruna Maia. Foto: Divulgação/Cia das Letras

Ciente de que os quadrinhos não vão pagar “a ração das minhas gatas, meu aluguel e minhas viagens”, Bruna aposta nesse interesse crescente por narrativas feitas sob a ótica feminina. Ela tem trabalhado em roteiros para séries, cujos temas são muito parecidos com os de seus quadrinhos: a vida de uma mulher em 2020. “Inclusive estou disponível para roteiros, me chamem. Mas quando quiserem comprar a minha obra para fazer um roteiro eu quero estar lá tendo um controle criativo do que vai ser feito, e não que um homem pegue meu trabalho e faça a narrativa como ele acha que deve ser”, avisa.


Parece que Piorou está à venda por R$ 69,90 nas livrarias ou no site da Companhia das Letras.

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