Juremir Machado da Silva

O pistoleiro daltônico

Change Size Text
O pistoleiro daltônico Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Falei em Getúlio ontem. Isso me levou a pensar num homem que, como historiador, conheci no Rio de Janeiro: “Seu” Alcino. A história da localização de Alcino João do Nascimento, o pistoleiro contratado pelos homens da Guarda Pessoal de Getúlio Vargas para matar o jornalista Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, merece ser contada e recontada em detalhes.

Tive de seduzir uma telefonista para que ela me desse, ao menos, o endereço do velho atirador de aluguel, cujo número de telefone estava bloqueado. Foi o começo de uma aventura de meses para tirar do esquecimento um personagem marginal da História.

Alcino era o capanga romântico, míope e daltônico. No crime da Rua Tonelero foi empregado pelo mesmo sujeito que o indicara para matar outro homem, por ciúme. Também despachara o cara errado. Deveria atirar num sujeito de calça branca e de camisa azul. Alvejara outro, de calça azul e de camisa branca. Tonelero valeu-lhe mais de 20 anos na cadeia, cantando no coral e ajudando na enfermaria. Aos 82 anos, quando o conheci, forte e alegre, Alcino vivia sereno em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Quando liguei para ele – depois que um célebre delegado da polícia carioca desde os tempos de Getúlio, a meu pedido, o descobrira no seu retiro, com a mão na massa, reformando a casa –, Alcino adotara uma voz de conspiração: “Precisamos resolver isto entre nós”, disse. “Não confio em jornalistas nem em editores. Todos enrolam. Quero 20 mil reais pelo meu depoimento para um livro. Não aceito cheque nem 10% sobre a venda. Comigo é assim: uma em cima da outra”. Cheguei a pensar que o estava contratando para um servicinho. Resolvi brincar: “O que pode fazer para merecer essa grana toda?”

Alcino riu gostosamente: “A gente, doutor, sempre guarda uma carta na manga”.

Alcino tinha uma teoria para vender. Fiz-lhe compreender que eu era somente um professor sem dinheiro para comprar informações. Aceitou bem a nova situação e propôs baixar o preço para 3 mil reais. Ri. Acabamos indo juntos, um mês depois, à Rua Tonelero reconstituir o episódio da noite de 4 para 5 de agosto de 1954. Na ocasião, como a história sabe e ensina, acabou morto o major-aviador Rubens Vaz, guarda-costas voluntário de Lacerda. O jornalista ficara ferido num pé. O guarda Sálvio Romero, baleado numa coxa. O atentado da Tonelero desembocaria, 19 dias depois, no suicídio de Getúlio Vargas.

Na Rua Tonelero, cabeça branca, manso, Alcino João do Nascimento mostraria como atravessou a rua para, segundo ele, ouvir o que Lacerda dizia. “Não fui lá para matar. A missão era seguir Lacerda. Só isso”. Valente, um dos homens da Guarda Pessoal de Vargas implicado no caso, debocharia no seu depoimento: “Alcino não foi lá para matar. Só tinha que dar uma surra de revólver no Lacerda”. Na versão do pistoleiro, Rubens Vaz, ao vê-lo chegar, saltara sobre ele. Lutaram. Ouviram tiros. Vaz cairia. Alcino fugiria. Perseguido por Sálvio, atiraria nele. Na sequência, quebraria o vidro traseiro do táxi que o esperava e sumiria na noite de Copacabana. Seu comparsa, Climério, fugira antes, passando até na frente de uma delegacia e dando uma informação errada a um policial.

Com sua fala suave de velho malandro, Alcino resumiria: “Lacerda atirou em Vaz. Bolou o próprio ferimento no pé. Enrolou todo mundo na farinha”. O revólver 38 de Lacerda nunca seria analisado, pois ele se recusaria a entregá-lo. Na famosa República do Galeão, para onde seriam recolhidos os suspeitos, Alcino garantiria ter sido torturado até vomitar a alma. “Fizeram de tudo com a gente. Teve até o tal banho aéreo. O pessoal da Aeronáutica fingia que ia jogar a gente de um avião. Era bonito ver a Baía da Guanabara lá de cima”. Afirmaria que Gregório Fortunato queria apenas controlar os passos do Corvo. “A coisa escapou das nossas mãos. Eu atravessei a rua para ver e ouvir melhor e foi aquela confusão. Ninguém esperava aquela tragédia”.

Alcino orgulhava-se de ter entrado, à sua maneira, na história junto com Vargas. A sua carta na manga era a velha tese de que Getúlio fora assassinado. Por quem? “Pelos milicos que o cercavam e queriam a caveira dele. Vargas foi traído”. Nomes? Bom, nomes, aí a gente teria de conversar sobre aquelas 20 mil balas, uma cima da outra. No final da vida, Alcino seria candidato a vereador numa cidadezinha do Espírito Santo. Tentaria obter votos contando que era o pistoleiro da história de Vargas.

Não se elegeu.

RELACIONADAS

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.