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O ciclone e um quase conto de terror

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O ciclone e um quase conto de terror Zona Sul de Porto Alegre foi uma das mais afetadas por quedas de árvores | Foto: Arquivo pessoal

Quando ela acordou, a árvore ainda estava lá.

O ciclone que matou 16 pessoas e desalojou milhares no Rio Grande do Sul deixou suas marcas no pátio da minha residência, na zona sul de Porto Alegre. No caminho de casa na noite de quinta-feira, avistamos um carro debaixo d’água em uma avenida e vimos o Guaíba virar mar, tamanha era a força das ondas que se formaram com o vendaval.

Foram três desvios no caminho até que chegamos ao nosso destino no breu, debaixo de chuva e nos deparamos com parte de uma árvore tombada no chão. Os galhos e os fios rompidos com a queda bloqueavam a entrada pelo portão.

Felizmente ninguém se feriu e o único prejuízo foi uma ponta da grade quebrada por conta do galho de 5 metros, que há mais de uma semana está preso no mesmo lugar.

Visão de dentro de casa na manhã seguinte à queda

No mais, foram cinco dias sem luz. Sim, cinco. Mas essa nem é a minha queixa principal. Voltemos para 2021.

Antes de nos mudarmos para esse endereço, abrimos um chamado na prefeitura em 20 de setembro daquele ano pedindo a avaliação da saúde dessa árvore localizada bem em frente ao terreno. Suspeitávamos que ela necessitava de manutenção. Recebemos um prazo de resposta: 4 de novembro do mesmo ano. Até hoje nunca tivemos retorno.

De volta a 2023, passado o ciclone, me pergunto se uma poda nessa árvore teria evitado a queda. Quantos casos semelhantes podem existir na cidade? Eu não tenho essas respostas. O que eu sei é que Porto Alegre, uma das cidades mais arborizadas do país, não vem cuidando bem de suas árvores.

Podas de má qualidade

Em janeiro deste ano, publicamos uma reportagem com denúncias da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) sobre podas desnecessárias na capital. “Não é preciso ser um técnico super experiente para perceber que uma árvore está sadia, e o mínimo que queremos é um retorno da Prefeitura sobre o porquê essas árvores estão sendo cortadas”, disse ao Matinal Heverton Lacerda, presidente da entidade.

Três anos antes, já falávamos sobre a falta de transparência no manejo arbóreo da capital e da má-qualidade das podas. Na época, o professor da UFRGS e ambientalista Paulo Brack criticava a terceirização do serviço: “Se há árvores que podem atrapalhar a circulação ou representam eventualmente algum risco, cortam e removem ‘por precaução’ quando elas poderiam ser recuperadas”.

No final do ano passado, entrevistei o engenheiro ambiental Paulo Pizá Teixeira, um dos fundadores da antiga Secretaria Municipal do Meio Ambiente (hoje Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade). Ele reforçou a precariedade das podas e lembrou que Porto Alegre chegou a plantar 3 milhões de árvores na década de 70. Hoje estima-se que a cidade tenha 1,3 milhão. Estima-se. Porque a prefeitura não sabe ao certo quantas árvores tem.

As podas na capital hoje ocorrem sob demanda dos moradores, segundo a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb). A assessoria explica que, a cada visita solicitada, os técnicos aproveitam para analisar outros exemplares da mesma rua “para melhor aproveitamento de tempo, logística e recursos”.

No início de junho, o executivo anunciou a contratação de um serviço digital que vai catalogar árvores próximas a vias de deslocamento de pedestres e automóveis. O serviço começaria pelo Centro Histórico e a região do 4º Distrito – as duas áreas vão receber investimentos do Banco Mundial, que pediu informações consistentes sobre a população vegetal.

Eventos extremos

No atual modelo de gestão do manejo arbóreo, segundo a prefeitura, o processo fica registrado no sistema do início ao fim e informa o status da demanda ao cidadão. Na prática, no meu caso, estou sem resposta sobre as condições da árvore em frente à minha casa desde 2021. E no episódio do ciclone, o prazo de dois dias dado pelo 156 quando solicitei a remoção da árvore se encerrou na terça-feira, sem solução. No sistema da prefeitura, meu pedido sequer está registrado.

Segundo a Smurb, desde a passagem do ciclone, o sistema 156 já registrou 1024 pedidos de remoção de árvores ou galhos caídos (desse total, pode haver casos duplicados). Até a manhã de ontem, 286 tinham sido atendidos.

Registro feito uma semana depois do ciclone

Estamos falando de uma situação extrema. O ciclone foi o evento climático mais letal das últimas décadas no estado. É aceitável que haja atrasos no atendimento. Além disso, ​​estou ciente de que há prioridades na frente da minha solicitação, como casos de imóveis destruídos e vias e escolas bloqueadas. Ainda há gente em situação muito pior (aliás, saiba como ajudar aqui).

Sem previsão de qualquer atendimento, nós mesmos limpamos o que foi possível, serrando os galhos menores até que os fios se ajeitassem no chão e a gente não precisasse mais se abaixar para passar por baixo deles ao entrar em casa.

Meu ponto é: eventos climáticos extremos, infelizmente, vão ser cada vez mais recorrentes no contexto do aquecimento global. Isso significa que Porto Alegre, assim como todas as cidades, precisa estar melhor preparada para um futuro que já chegou.

Atendimento nota zero

Somado aos transtornos provocados pela falta de luz, o mau atendimento da CEEE Equatorial foi uma queixa recorrente na cidade. Sobre isso, recomendo a reportagem de Gregório Mascarenhas, que conversou com o Sindicato dos Eletricitários do Rio Grande do Sul sobre as mudanças na empresa depois da privatização, ocorrida no ano passado.


Marcela Donini é editora-chefe do Matinal e aproveita para agradecer o apoio dos familiares e vizinhos que garantiram banho quente e abrigo nos dias sem luz.
Contato: [email protected]

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