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Esse pedestre não existe

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Esse pedestre não existe Crédito: Coletivo Autônomo Morro da Cruz.

A pessoa cruzando esta ponte é Leonardo Rodriguez Duarte, 58 anos, morador do Morro da Cruz, na zona leste de Porto Alegre. Ele tem uma missão importante no bairro: diariamente, ajuda crianças e adolescentes a atravessarem a ponte precária que une as ruas Vidal Negreiros e Santa Teresa sobre o arroio Moinho para chegar à ONG Coletivo Autônomo Morro da Cruz, que oferece aulas no contraturno e de informática. 

Feita de tábuas de madeira com marcas do tempo e sem proteção lateral, a estrutura é hoje um caminho usado por cerca de 450 pessoas, a maioria crianças, para ir à escola. A Matinal, dentro do projeto Pé no Chão (leia mais aqui), publicou uma matéria sobre o problema. Há oito anos, moradores pedem à prefeitura uma nova ponte, mais segura, para a comunidade. Em vão.

Para a prefeitura, Leonardo e a ponte não existem. 

Leonardo Rodriguez Duarte, 58 anos, ajuda os moradores a atravessar a ponte em segurança. Crédito: Coletivo Autônomo Morro da Cruz
Leonardo Rodriguez Duarte, 58 anos, ajuda os moradores a atravessar a ponte em segurança. Crédito: Coletivo Autônomo Morro da Cruz

O repórter Gregório Mascarenhas entrou em contato com o poder público para entender por que os apelos da comunidade não são atendidos. Depois de passar pela Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSurb) e pela Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi), Gregório ouviu que deveria falar com o Dmae. Mas, antes, a assessoria da Smoi deu a resposta esclarecedora:

“A área é irregular, mas, se for pra fazer algo provisório, a SMSUrb é que faz esse tipo de trabalho”, disse à Matinal. 

Bom, se a área é irregular, não há nada a fazer. Este é o raciocínio da prefeitura. Aquela ponte não existe para a administração Sebastião Melo — e nem deveria existir, já que é irregular. Leonardo, portanto, é um pedestre imaginário, cruzando uma ponte presente apenas nos sonhos ingênuos dos moradores do Morro da Cruz. 

O Dmae aproveitou a oportunidade para mandar um recado à comunidade periférica do Morro da Cruz, que sofre com falta de creches (cerca de 700 crianças do morro estão fora das escolinhas), com a falta de vagas de Ensino Médio e com a deterioração da Dr. Martins Costa que funciona pela metade por causa de uma infiltração pequena que jamais foi consertada e terminou por comprometer a maior parte do prédio: “É importante salientar que essas moradias deveriam ser construídas dentro da margem de segurança, que é de 15 metros do entorno dos arroios.” 

O departamento se referia às casas “irregulares” que aparecem na foto atrás de Leonardo, erguidas com sobras de madeira, papelão, plástico pelos próprios moradores, na área “irregular”, perto de uma ponte “irregular”. “Irregular” é o termo técnico para invisível. 

O Dmae, a Smoi e a Smurb não sabem ou não estão interessadas em saber que a Constituição brasileira diz expressamente que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e têm direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. 

Sebastião Melo tem um recorte ideológico peculiar sobre o poder público: a iniciativa privada sempre fará melhor do que a prefeitura. Deve ser por isso que uma obra orçada em pelo menos 3 mil reais, um troco, não sai do papel: não há como privatizá-la ou concedê-la. A ideologia de Melo o impede de enxergar Leonardo e a ponte.

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