Reportagem

Donos de bares de Porto Alegre planejam processar município por danos da enchente

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Donos de bares de Porto Alegre planejam processar município por danos da enchente Mutirão de limpeza na Travessa dos Venezianos. Foto: Gregório Mascarenhas

À medida que a água recua nos bairros de Porto Alegre, empresários contabilizam perdas decorrentes das inundações e avaliam a possibilidade de responsabilizar judicialmente estado e município pelos prejuízos – iniciativa que vem ganhando força no mundo todo devido ao papel do Estado diante das mudanças climáticas. Proprietários de estabelecimentos na Cidade Baixa e no 4º Distrito, duas das regiões mais atingidas na capital, afirmaram à Matinal que entrarão na justiça em busca de reparação.

Nos últimos oito anos, cerca de 5 mil pessoas entraram com processos contra o poder público por prejuízos provocados por enchentes do RS, revelou um levantamento do UOL com base em dados do Tribunal de Justiça. Ainda segundo a reportagem, um conjunto de ações movidas por mais de mil pessoas já resultou em cerca de R$ 10 milhões em indenizações por danos morais e materiais.

A atual crise do RS mobiliza novos litígios climáticos. Proprietário do Gravador Pub, Gabriel Vieira Lopes vai acionar a prefeitura de Porto Alegre na justiça por conta dos danos ao estabelecimento, localizado no bairro São Geraldo – um dos mais afetados pelas inundações. Lopes também convocou outros empresários para uma ação coletiva. O advogado da causa, Alfredo Salomão Neto, afirma que dez pessoas já começaram a reunir documentação para buscar reparação judicial. 

“A responsabilidade civil é evidente”

Segundo Salomão, a ação será baseada no entendimento de que houve omissão por parte do município de Porto Alegre em relação ao risco de enchentes. “A falha da prefeitura é evidente. A responsabilidade civil é evidente. Não é a primeira enchente e não será a última, então o fator imprevisibilidade não é o caso. Temos precedentes das enchentes, inclusive do ano passado”, acrescentou. “É de responsabilidade do município indenizar as pessoas quando há enchentes.”

Para Salomão, houve omissão por parte do poder público ao falhar na manutenção e na conservação do sistema de defesa – projetado inicialmente para suportar uma cheia de 6 metros, portanto maior do que a atual, que alcançou 5,35m – e no planejamento urbano, que permitiu residências em locais anteriormente afetados por inundações, como o Humaitá. 

Segundo o advogado, nos últimos dez dias cerca de 25 pessoas o procuraram e dez já começaram a reunir documentos para abrir a ação – sete empresários, que alegam lucro cessante, danos materiais e danos morais, e três pessoas físicas que tiveram danos em seus imóveis. Salomão ainda estuda qual seria a responsabilidade do estado do Rio Grande do Sul no desastre e se caberia processá-lo. 

Pub inundado por água podre

Foto: Instagram Gravador Pub

Gabriel Vieira Lopes, do Gravador Pub, foi um dos primeiros que conversou com Salomão a respeito da eventual responsabilização judicial do poder público na tragédia. “Só de cadeiras são cerca de R$ 60 mil. Em pizzas, R$ 25 mil”, relatou. “Não sei o tamanho do estrago, porque não tirei quase nada de lá. Amontoei o que deu no segundo andar, mas teve um amigo que fez isso e também perdeu as coisas, por conta da umidade.”

Lopes conta que o nível da água chegou a quase dois metros em frente ao bar, que fica na rua Conde de Porto Alegre. A inundação ainda inviabiliza a entrada no local. “O pub estava muito escuro. A água subiu 1,90m na frente e 1,80m, 1,70m no pub. Cobre quase toda a janela, e só temos duas. Elas estão cobertas por água podre”, descreveu. 

Não bastasse o prejuízo, Lopes adoeceu após ter contato com a água das enchentes. “Eu não durmo há dois dias por conta de uma tosse forte”, disse ele, que não vai ao Gravador Pub desde o início da semana. “Agora me convenci que preciso repousar, vou tentar voltar lá na sexta-feira.”

Atraso em alerta gerou prejuízos

Pilhas de móveis e itens diversos descartados nas calçadas da Cidade Baixa desde o começo desta semana ilustram o tamanho do estrago. O bairro foi o quinto mais atingido pela enchente, com mais de 9 mil pessoas afetadas e regiões onde a água ultrapassou 1,5m de altura no interior dos imóveis. 

No dia 6 de maio, quando as vias próximas à avenida Praia de Belas já alagavam, a água passou a subir rapidamente na Cidade Baixa por conta do desligamento da estação de bombeamento de águas pluviais (EBAP) 16 por risco elétrico, conforme explicou o DMAE. 

A medida provocou a inundação de um perímetro que vai da avenida Ipiranga, no Menino Deus, até a rua Demétrio Ribeiro, no Centro Histórico, da orla até a rua José do Patrocínio, na Cidade Baixa, ultrapassando-a. Na rua da República, por exemplo, a mancha de alagamento chegou até a travessa Comendador Batista, a 95 metros da rua Lima e Silva. Isso significa que o Guaíba chegou, no ápice da cheia, a 1,4 quilômetros de sua margem original. O papel crucial da EBAP ficou ainda mais evidente a partir do dia 13 de maio, quando a estação foi restabelecida e a cheia passou a recuar na região.

Como mostrou a Matinal, o alerta da prefeitura chegou atrasado. Gerente do bar Urso de Varsóvia, na esquina da República com a João Alfredo, Gustavo Reich soube do avanço da água na região por um vizinho. Ele havia fechado o bar no domingo, 5 de maio, com a expectativa de abri-lo no dia seguinte. “Vim aqui correndo, consegui só levantar as cadeiras, que são de madeira, tirar alguma coisa dos congelados, mas não deu muito tempo, já que a enchente estava na altura da roda do carro. Aí fechamos e fomos embora, torcendo que a água fosse chegar a um palmo, um palmo e meio”.

Mas a inundação chegou a 1,15m dentro do Urso de Varsóvia. “Nunca imaginei que ia chegar até aqui. Depois fiquei sabendo que a bomba que eu confiava era a bomba de número 16, que foi desligada”, lamenta. Um dos itens que Gustavo pretende recuperar, apesar do estado praticamente irrecuperável, é o balcão do bar, que por décadas acolheu os frequentadores do antigo bar Ossip, onde hoje funciona o Urso de Varsóvia.

“Não foi um acidente, foi realmente uma falha”

A poucos passos dali, também na rua da República, está o Olivos, outro estabelecimento gravemente atingido. No dia 23 de maio, aproveitando o recuo da inundação, uma das sócias do bar, Marina Tosin limpava o interior do bar. “Pelo tudo que a gente tem acompanhado pelas notícias, não foi um acidente, foi realmente uma falha”, avalia. A necessidade de evacuação do bairro resultou em perda de insumos armazenados no local.

A subida rápida da água também deixou desprevenidos os estabelecimentos da Travessa dos Venezianos, conjunto de casas históricas entre as ruas Lopo Gonçalves e Joaquim Nabuco. A falta de tempo para planejar a retirada de itens de valor provocou prejuízos no bar Guernica, que havia sido alagado por um temporal em janeiro.

“Não esperávamos que a inundação chegasse naquela proporção, pois a Cidade Baixa estava seca até então. Fomos informados que as bombas haviam sido desligadas quando a água começou a invadir o bairro. No meu caso, foi uma situação de pânico tentar recolher algumas coisas do bar e ao mesmo tempo sair da minha casa, pois a água tomou conta da rua. Foi tudo muito rápido”, relata Bruna Martello, uma das sócias do Guernica.

Deu tempo para salvar uma mesa de som, um computador e um piano elétrico, que foi levado para o mezanino. “Da minha casa, saí com a roupa do corpo, um pijama e os três gatos. Não houve qualquer tempo de planejamento. Era uma situação de pânico no bairro”, conta.

A água chegou a 1,5 metros no interior do bar. Um freezer, apesar da tentativa de salvá-lo, não resistiu. Muita comida e materiais de cozinha tiveram que ser descartados. “Perdemos uma quantia bem significativa para um estabelecimento do nosso tamanho. Como usamos o valor que tínhamos em caixa para suprir as perdas de janeiro, vimo-nos agora com as calças da mão”, lamenta Bruna.

Medo de represálias

Dos estabelecimentos contatados pela Matinal na Cidade Baixa, um confirmou a intenção de buscar ressarcimento judicialmente pelas perdas financeiras provocadas, segundo avaliam proprietários, pelos problemas de manutenção das EBAPs. “Não há dúvidas quanto à possibilidade de acionarmos a justiça, face aos danos sofridos, mas por ora toda a energia está em nos restabelecermos imediatamente”, diz a dona do Guernica, afirmando ainda que empresários do bairro estão pensando em estratégias imediatas e jurídicas para remediar as perdas.

Outro proprietário de bar, que preferiu não se identificar, conta que não processou o município por receio de perseguição – fato que já teria ocorrido em um estabelecimento do bairro. Segundo o relato, após acionar judicialmente a prefeitura por uma questão de licença de funcionamento, funcionários do município teriam passado a fazer batidas de fiscalização quase diariamente, como retaliação. 

Litígios climáticos em ascensão global

A busca por responsabilização do poder público em relação a ações e omissões que contribuem para o impacto das mudanças climáticas é uma tendência internacional. O relatório “Global Climate Litigation Report” de 2023 – publicação da ONU dedicada aos litígios climáticos – mapeou 2.180 casos relacionados ao clima em 65 jurisdições internacionais. As demandas apresentam um aumento constante desde 2017. O estudo afirma que “o acesso à justiça permite a proteção da legislação ambiental e dos direitos humanos e promove a responsabilização nas instituições públicas”.

Um exemplo disso ocorreu no ano passado, quando uma juíza do Tribunal Distrital de Montana decidiu que os cidadãos do estado norte-americano “têm um direito constitucional fundamental a um ambiente limpo e saudável, que inclui o clima como parte do sistema de suporte da vida ambiental”. A magistrada determinou ainda que o estado de Montana – produtor de carvão e gás – leve em consideração a emergência climática ao tomar decisões sobre projetos relacionados à indústria dos combustíveis fósseis. A decisão histórica responde à demanda de um grupo de jovens norte-americanos e é considerada a primeira ação constitucional relacionada às mudanças climáticas nos EUA. Processos similares, com protagonismo jovem, estão sendo julgados em outros estados norte-americanos.

Do outro lado do Atlântico, em 2024, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos concluiu que a Suíça não cumpriu seus deveres em relação às mudanças climáticas. A decisão também aponta “lacunas críticas” nas políticas do país relacionadas às mudanças climáticas. A ação foi movida pelo coletivo KlimaSeniorinnen (Idosas pelo Clima, em tradução livre), que reúne mais de duas mil mulheres na faixa dos 70 anos.

A ONU destaca em seu relatório sobre litígios climáticos que crianças, jovens, mulheres, comunidades e povos indígenas “estão desempenhando um papel proeminente na apresentação desses casos e na condução da reforma de governança das mudanças climáticas em cada vez mais países”.


Colaborou Ricardo Romanoff.

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