Reportagem

“Medidas punitivas não dão conta da violência contra a mulher”, diz advogada sobre denúncias em Porto Alegre

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“Medidas punitivas não dão conta da violência contra a mulher”, diz advogada sobre denúncias em Porto Alegre Domenique Goulart alerta: não validar o sofrimento de uma criança que sofreu abuso agrava o trauma | Foto: Janaina Silveira/Divulgação

Criminalista defende mudança de cultura no judiciário e comenta casos como os estupros de vulnerável relatados à Matinal nesta semana

A maioria das vítimas de estupro no Brasil são meninas que conhecem seus abusadores. Esta é uma das razões que, muitas vezes, dificultam as denúncias: são pais, tios, avôs – ou amigos da família, como nos casos denunciados em Porto Alegre no primeiro semestre deste ano e relatados em reportagem da Matinal.

Para a advogada feminista e mestra em Ciências Criminais Domenique Goulart, o judiciário brasileiro é machista. Tanto que existe um protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do Conselho Nacional de Justiça, que recentemente ganhou força de norma e deve ser implementado pelo judiciário, segundo Goulart. “Muitas vezes juízes e juízas descredibilizam e atacam a honra da vítima para deslegitimar aquela denúncia”, afirma.

É comum que se passe muito tempo entre o fato e a denúncia. Nos casos das três amigas citadas na reportagem publicada ontem, Alberto Otavio Deluchi já não pode mais ser punido: os crimes, que teriam ocorrido nos anos 90, prescreveram. De tão frequente, situações como essa inspiraram o deputado Guiga Peixoto (PSL-SP) a elaborar um projeto de lei que propõe a imprescritibilidade do crime de estupro. Mas Goulart alerta: a questão vai além da punição e requer uma mudança de cultura na sociedade e no sistema judiciário. “Medidas punitivas não dão conta da violência contra a mulher”, diz a advogada nesta entrevista, que também contribui para o Agosto Lilás, campanha de conscientização pelo fim da violência contra a mulher no mês em que faz aniversário a Lei Maria da Penha.

Além dos delitos prescritos, Deluchi é acusado de crimes mais recentes, e acabou denunciado pelo Ministério Público por estupro de vulnerável contra uma mulher que estava acamada no hospital e, portanto, sem condições de oferecer resistência. O caso ocorreu em 2015, segundo relato de Claudia (nome fictício), 45 anos, à Matinal

Nesta entrevista, Domenique Goulart defende provas alternativas que possam ser usadas em crimes sexuais mesmo passados muitos anos do fato e destaca a importância de proteger e apoiar crianças que relatam abusos.

Leia, a seguir, a conversa com a criminalista.

Matinal – O que você acha do projeto de lei que prevê tornar imprescritível o estupro de vulnerável?

Domenique Goulart – Temos que olhar para essa situação por uma perspectiva mais ampla. O que a gente vê na prática? Geralmente as famílias não conseguem denunciar justamente porque (os abusadores) são pessoas conhecidas. Tem um imaginário social de que o estupro acontece num beco escuro, que alguém vai nos arrastar pela rua, como aconteceu recentemente em Belo Horizonte. Acontece, mas é exceção.

A punição, a responsabilização e a reparação são fundamentais, mas temos que pensar por que só 30 anos depois essas mulheres que sofreram violência sexual lá na infância têm uma conjuntura social ou tomam coragem para poder denunciar. Falar em imprescritibilidade é falar sobre uma resposta, e não sobre esse fenômeno social. É preciso pensar, sobretudo, no resguardo dessas crianças, como as redes de proteção e os serviços da política de assistência social estão preparados para lidar com isso. E como a gente, socialmente, vai falar sobre isso para que as crianças não se culpabilizem, tenham credibilidade, respaldo. Tudo isso é incidir no problema.

Matinal – Como prevenir esses casos e proteger nossas crianças?

Domenique Goulart – Nos últimos 10 anos, uma média de 25 mil meninas abaixo de 14 anos no Brasil pariram outras crianças. Todas essas 25 mil meninas teriam direito ao aborto legal. É outra outra ponta desse iceberg. Muitas vezes, a atenção primária já encaminha essa menina para o pré-natal em vez de ofertar o direito ao aborto legal.

Educação sexual é sobre desnaturalizar a violência e as intervenções nos corpos das crianças.

Domenique Goulart

Meninas sofrem abusos por muitos anos, mas, às vezes, os casos só se tornam visíveis quando ela está gestante. Então, falar sobre prevenção é falar sobre educação sexual, contracepção, consentimento, aborto legal.

A escola também é um espaço muito importante. Esses dias li sobre uma menina que falou na escola sobre o abuso que estava passando em casa porque na escola foi falado sobre racismo e violência, e ela se sentiu à vontade. Educação sexual também é sobre desnaturalizar a violência e as intervenções nos corpos das crianças.

Matinal – Em relação aos julgamentos desse tipo de caso, no qual é difícil haver provas, digamos, mais concretas, ainda mais muitos anos depois do fato, ainda é comum as mulheres serem desacreditadas?

Domenique Goulart – Entra aí a complexidade da materialidade da prova num judiciário que tem uma perspectiva machista. Existe o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do Conselho Nacional de Justiça, que deveria ser respeitado e implementado pelo judiciário. Muitas vezes juízes e juízas atacam a honra da vítima para deslegitimar a denúncia. Juridicamente, dizemos que nesse tipo de delito a palavra da vítima tem papel preponderante justamente pela ausência de materialidade, mas o código de processo penal dá a possibilidade de outras provas.

Nesse tipo de delito, a palavra da vítima tem papel preponderante pela ausência de materialidade, mas há possibilidade de outras provas.

Domenique Goulart

Em uma perspectiva de gênero, que alternativas seriam essas que não a prova da materialidade da conjunção carnal? A violência sexual deixa diversos impactos psicológicos nas crianças e nas mulheres. Então, perícias psicológicas podem ser prova. Várias expressões podem ser resultado de violência sexual, como sintomas de depressão, uso abusivo de drogas ou de álcool, questões de sociabilidade, taquicardia. Quando criança, isolamento e irritabilidade, brincadeiras de sexualização. A materialidade, portanto, pode ser demonstrada por diversos meios de prova, só que precisa haver um judiciário que tenha essa sensibilidade.

Além de uma consciência e perspectiva de gênero na condução do processo, pensar em um espaço acolhedor para os relatos dessas mulheres, por exemplo. Temos a Lei Mariana Ferrer para tentar mitigar violências institucionais. Ou seja, qualquer tipo de ataque, seja do juiz, da juíza, dos defensores públicos ou advogados, em uma audiência ou na condução do processo, que vise atacar ou revitimizar a vítima ou testemunhas, pode ser responsabilizado. 

Domenique defende perspectiva de gênero nos julgamentos
Foto: Lídia Schneider/Divulgação

Matinal – Duas vítimas ouvidas na reportagem citaram transtornos alimentares como traumas dos abusos na infância. É um sintoma comum também? 

Domenique Goulart – Sim, aparecem, assim como insônia ou longos períodos de sono. Depende do caso, do contexto. É importante considerar como esses laudos psicológicos são feitos. Uma entrevista de uma hora, duas horas, não vai demonstrar essas coisas. Mas se são anos de acompanhamento terapêutico, passagens por serviços de políticas públicas… E depois, na fase policial, na fase judicial, como esses relatos são consistentes. Se tu parte de uma perspectiva de gênero, tu vai avaliar diferente essas provas.

O estuprador é um filho são do patriarcado.

Domenique Goulart

Só que muitas vezes há absolvição não só por causa da falta de perspectiva de gênero, mas também porque se criou uma lacuna entre a importunação sexual e o crime de estupro. A lei 12.015 de 2009 aumentou a tipificação de estupro, abarcando outros tipos de atos libidinosos que não só a penetração vaginal ou anal. Como a pena é muito alta, de 12 a 30 anos, muitas vezes acaba havendo absolvição porque o crime não é “tão grave assim”. Depois do estupro, a próxima situação seria a importunação sexual, cuja lei é de 2018 e a reclusão pode ser de até cinco anos. Aí voltamos à questão inicial sobre a prescrição do crime. Claro, a gente precisa responsabilizar, reivindicar reparação, mas medidas punitivas não são suficientes para dar conta da violência contra as mulheres. 

Matinal – No caso relatado na reportagem, o promotor pediu a prisão preventiva do acusado porque uma pessoa “com comportamento pedófilo não se satisfaz com apenas uma única vítima”. Mas o juiz indeferiu o pedido argumentando que os casos mais recentes já teriam ocorrido há mais de seis anos. Como você avalia isso?

Domenique Goulart – É uma questão complexa. A prisão preventiva busca tentar proteger a vítima ou resguardar a investigação criminal ou porque a liberdade do acusado botaria em risco a ordem pública. Neste caso, poderia ter esse entendimento. se tem indícios de que ele vem cometendo esses delitos há muitos anos, existe um risco. Mas, bom, então a gente vai encarcerar todas as pessoas suspeitas de abuso sexual? Pode ser um caminho. Mas outro caminho é pensar que isso é uma expressão social. A gente pode patologizar um estupro, dizer que é uma doença mental. Ou a gente pode entender como um fenômeno social. Tem uma frase impactante que diz que “o estuprador é um filho são do patriarcado”. Eu não sou uma feminista abolicionista, ou seja, não acredito que a prisão nunca é válida. Nesse tipo de caso, pode ser sim. Mas temos que pensar em como dar conta disso socialmente.

É preciso dar crédito para essas crianças, apoiá-las, dar muito amor, para que a negativa da família e das instituições não sejam uma outra camada do trauma.

Domenique Goulart

Matinal – Por último, o que tu recomenda às vítimas maiores de 18 e às famílias das vítimas menores em relação a fazer a denúncia. Como elas se preparam para levar adiante uma acusação? 

Domenique Goulart – Sobretudo tem que proteger as crianças. Encaminhá-las para o conselho tutelar, acompanhamento psicológico. E dar crédito para essas crianças, apoiá-las, dar muito amor, para que a negativa da família e das instituições não sejam uma outra camada do trauma. Existem legislações recentes, como a lei Henry Borel, que prevê medida de proteção para crianças à semelhança da medida protetiva de urgência para mulheres em situação de violência doméstica, e prevê o afastamento do lar do agressor para tentar resguardar a integridade física e psicológica da criança no momento. Mas muitas famílias acabam não afastando o suspeito, por diversos contextos sociais, às vezes até por depender financeiramente ou por não ter lucidez sobre esse tipo de situação.


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