“Garagem na mão dos empresários impede a concorrência”, afirma especialista sobre venda da Carris
Coordenador de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o geógrafo Rafael Calabria teceu diversas críticas ao modelo de privatização da Carris. Ele alerta que a intenção de se desfazer da garagem irá facilitar o oligopólio na área do transporte público.
Segundo Calabria, as garagens públicas constam nas discussões do Marco Legal do Transporte Coletivo, que o Idec colabora na elaboração. “São Paulo tem três garagens públicas, e jamais pensou em vender. É difícil imaginar um prefeito com uma visão tão ruim quanto a que o Melo está tendo em Porto Alegre”, comparou. O texto está em vias de ser concluído pelo Ministério das Cidades para ser enviado ao Congresso.
Para o especialista, a prefeitura tem agido com “coerência no erro” na área do transporte público, retirando isenções. Ainda assim reconhece que, em nível nacional, “faltam iniciativas disruptivas” para o setor.
Leia a entrevista a seguir:
O leilão da Carris teve apenas dois interessados e um deles foi desclassificado. Ela foi vendida por pouco acima do valor mínimo de R$ 109,9 milhões. Qual avaliação você faz disso?
Tem todo o jeito de oligopolização e cartelização. Em São Paulo teve apenas uma empresa por área, só concorrendo quem já opera. E todos sempre com a proposta mais barata porque sabiam que seriam só eles. No Rio também ocorreu a mesma coisa, várias foram desclassificadas e restou apenas a proposta mais barata. Então, sempre existe a suspeita de cartelização e oligopolização do sistema de transporte.
Em entrevista à Matinal, a secretária de Parcerias da prefeitura, Ana Pellini, disse que a prefeitura fez de tudo para tornar a Carris atrativa ao setor privado porque ela é deficitária, tem dívidas. Em uma entrevista recente ao Sul21 você disse o contrário sobre as garagens, ainda mais perante o Marco Legal do Transporte que está sendo debatido. Como este projeto de lei em debate enxerga as concessões?
Só para colocar os pontos que você falou: nossa, é muito, é muito ruim. Nem sei que palavra usar, lamentável. É um discurso tecnicamente errado. Não sei o quanto a Ana Pellini está atualizada quanto o Adão (Adão Castro, secretário de Mobilidade Urbana da capital), mas pelo menos o Adão está atualizado no debate. Ela demonstra total desinformação e desconhecimento do setor de transporte.
Essa dívida da Carris, acredito que deve ser algum déficit que eles apontam que a Carris tenha, não faz o sentido repassar pelo privado, não faz sentido repassar para o comprador, porque se o privado tiver déficit, o setor público terá de auxiliá-lo.
O setor de transporte não é superavitário nem rentável. Fora do Brasil é super comum as estatais serem subsidiadas, enquanto o Brasil ainda está neste lobby do setor privado que tudo tem de ser rentável. Não faz sentido repassar a dívida. O transporte não é rentável e não foi feito para ser rentável. A receita do empresário é a tarifa. Se ela quer que o negócio seja atrativo, ela quer uma tarifa cara.
É o que estamos denunciando o que o Tarcísio (Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo) está querendo fazer, tornar o transporte público atrativo para o empresário. Se você quer que o transporte público seja atrativo, você tem de manter público e não privatizar. Isso demostra uma visão equivocada e profundamente ideológica deles de tratar a privatização como princípio e não como a melhor forma de fazer o sistema funcionar. Bem ruins as falas da secretária.
E sobre a concessão das linhas pelo preço simbólico de R$ 1?
Não há muito paralelo porque não há empresas estatais de transporte sendo privatizadas no Brasil. Mas a lei federal proíbe a outorga para o setor de transporte do Brasil, porque a outorga é adiantamento de receita. Mas, na operação, você precisa, sim, entender o quanto vale essa receita. Você vai cobrir o risco do serviço para o empresário. Porque o poder público já subsidia o transporte. Para que privatizar algo que ele (governo municipal) vai ter de continuar colocando o dinheiro, mas sem ter o controle da operação? Mais um ponto que mostra uma contradição e coerência técnica da prefeitura.
A secretária de Parcerias também disse que as garagens não têm utilidade para o sistema. Você concorda com essa frase?
Parece que eles estão brincando! A garagem é o bem mais estratégico para uma empresa de transporte. Por quê? Porque permite ao empresário controlar a cidade. É difícil fazer uma nova garagem em pontos nobres da cidade. Por isso que a lei federal (o Marco Legal dos Transportes, que está em discussão) vai proibir que as garagens sejam um bem privado. O que mais os empresários estão reclamando é isso: tem muito empresário que só quer garagem.
O poder público deveria manter esses bens para garantir melhores licitações no futuro, para permitir concorrência e evitar a oligopolização. No Brasil todo, ter a garagem na mão dos empresários é o que impede a concorrência. Quem vai concorrer nas licitações são quem tem garagem e frota. Ninguém vai querer entrar numa cidade e construir uma garagem porque é caro, é do tamanho de um parque. Não é uma vaga de garagem, é gigantesco. A garagem é o principal elemento que favorece o oligopólio de transportes, qualquer empresário sabe disso.
A fala da secretária que um empresário não iria querer comprar uma garagem também não faz sentido. É desinformação ou má intenção. Sem sombra de dúvidas, o pior erro de Porto Alegre foi passar a garagem aos empresários (A Viamão deu um lance pouco acima do mínimo, R$ 109,9 milhões e arrematou também as garagens). Vai fortalecer o oligopólio no futuro. Deveria ser um ponto a ser questionado juridicamente.
O que diz o Marco Legal do Transporte que está sendo debatido?
A ideia é que seja um projeto de lei, como um código brasileiro do transporte coletivo. A Lei da Mobilidade de 2012 é uma lei de diretrizes, que sugere que a tarifa deve ser módica, que o serviço deve ser inclusivo, sustentável. Agora a ideia agora é ter uma lei detalhando o que as prefeituras têm de prover na gestão, a importância de ter uma empresa pública, como organizar os financiamentos ao serviço e regular a contratação, transparência, bilhetagem independente, que Porto Alegre não tem. São Paulo já tem bilhetagem pública. Rio e Brasília também estão avançando nisso. Outro ponto importante é que a lei coloca a garagem como um terreno de utilidade pública. Tem de caminhar para a estatização. Determina incluir nos contratos em andamento ou nos que vão iniciar as garagens como bens irreversíveis, o que significa que, ao final do contrato, passariam de volta ao poder público.
Qualquer técnico de transporte ligado às empresas ou à prefeitura vai dizer que as garagens são o bem mais estratégico do sistema de transporte coletivo. É o erro mais crasso (entregar as garagens), tanto que a lei federal quer impedir sua venda.
Há avanços em contratos de transporte em outras partes do Brasil?
Estamos numa fase de gestões muito tímidas, frágeis. São Paulo tentou tirar a garagem, mas não conseguiu. Rio está construindo garagens públicas, em terrenos do Exército e das universidades. Curitiba também estuda novos modelos de contrato. São José dos Campos também. Faltam iniciativas disruptivas. Mas na contramão, de modo tão espalhafatoso, é só Porto Alegre. São Paulo tem três garagens públicas e jamais pensou em vender. É difícil imaginar um prefeito com uma visão tão ruim quanto a que o Melo está tendo em Porto Alegre.
As cidades estão tentando inovar, ainda que de forma tímida, mas Porto Alegre está escolhendo o pior modelo possível. É estrutural, uma visão ruim da gestão e do financiamento do transporte coletivo.
A gestão de Marchezan teve uma ideia inovadora em vários aspectos, propondo o financiamento do transporte coletivo taxando os aplicativos, mas não foi para frente, infelizmente. Mas era uma sinalização correta, pena que ele tinha uma articulação política péssima.
O prefeito, com apoio da Câmara Municipal, também eliminou vários dias de passe livre, inclusive durante eleições, e isenções e gratuidades para uma série de categorias. O que você acha disso?
Tem uma certa coerência no erro, né? A prefeitura de Porto Alegre está errando em vários aspectos de mobilidade urbana. Eles tiraram inclusive dos bombeiros, né? É uma parcela irrelevante da população.
É um debate equivocado e mesquinho. A falta de passageiros e da lotação dos ônibus que não sustentam financeiramente o negócio é do uso da massa de usuários e não de categorias que não têm como custeá-lo.
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