Reportagem

Olívio Dutra: Orçamento Participativo em Porto Alegre foi desvirtuado

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Olívio Dutra: Orçamento Participativo em Porto Alegre foi desvirtuado Olívio Dutra no comício com Lula, em outubro de 2022, em Porto Alegre | Foto: Joaquim Moura/Divulgação

Prefeito que implementou o modelo na Capital há 34 anos critica lógica da gestão atual de disponibilizar verba e depois abrir ao debate popular. Leia os destaques da entrevista do ex-prefeito e governador para o Matinal.

Quando implementou o Orçamento Participativo em sua gestão à frente da Prefeitura de Porto Alegre, em 1989, Olívio Dutra vinha da participação na Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição Federal de 1988. Era um período de reabertura democrática, e qualquer decisão deveria emanar dos desejos do povo. Por isso, naqueles anos, ansiava por uma participação popular entranhada nos mecanismos do poder público.

Hoje, 34 anos depois, ele enxerga um desvirtuamento da proposta inicial que é praticada como Orçamento Participativo. Para o ex-prefeito, ex-governador do estado e ex-ministro das Cidades no primeiro governo Lula, a simples reserva de uma verba para demandas comunitárias, sem a discussão sobre a origem da receita e o controle das demais despesas da administração municipal, torna o OP inócuo. Ele só tem sentido se conta com a atuação das pessoas, em todas as etapas.

“Este é um sonho democrático. Imagina tanta coisa que tem o orçamento, que é uma peça essencialmente política, e, embora tenha que ter técnica, e as ciências tenham que estar incorporadas na sua montagem, lida com milhões de vidas, lida com a relação do ser humano entre si, com a natureza, os espaços urbanos, os rurais, o desenvolvimento, a visão de futuro, os projetos na área da saúde, da educação, do transporte, da infraestrutura. Enfim, é uma peça que não pode ser discutida, programada e montada no diálogo bilateral entre executivo e legislativo”, resume Olívio.

Em reportagem publicada nesta quarta-feira, dia 8, o Matinal mostrou que a Prefeitura executou apenas 20% do OP em 2022. Para este ano, assegura a incorporação dos 8 milhões  de reais não utilizados no ano passado aos 15 milhões aprovados pela Lei Orçamentária Anual de 2023. “Eu acho que essa forma reduz a potencialidade da proposta orçamentária na discussão conjunta de receita e despesa. O orçamento tem duas duas pernas, receita e despesa. Não é um Saci Pererê, que salta com uma perna só. Tem que estar na ideia que a receita e despesa sejam discutidas conjuntamente”, observa o ex-prefeito.

A seguir, veja os principais trechos da entrevista.

Caráter pedagógico

A essência do Orçamento Participativo, na visão de Olívio, é o caráter pedagógico da participação popular. Quando um cidadão se envolve nas assembleias, hierarquiza as necessidades e discute a aplicação da verba pública, ele também aprende de onde vem o dinheiro, o que é tributado e o que não é, quem tem vantagens e quem tem benefícios. “Cria no cidadão um conhecimento maior, mais detalhado do funcionamento da máquina pública. Porque é esse dinheiro que depois vai propiciar os investimentos na saúde, na infraestrutura, na ciência, na tecnologia, no meio ambiente, no lazer, na cultura”, define. 

Além disso, fornece à população subsídios essenciais para a cobrança do poder legislativo no exercício de seus mandatos. “É bom que a cidadania vá se apropriando de conhecimentos para poder, depois que a proposta vai pro legislativo, acompanhar o debate. Garantir que o básico, o fundamental da discussão da qual a cidadania participou, seja preservado naquilo que o legislativo vai considerar lei para ser executado”, completa Olívio.

Respeito ao Legislativo

Uma ressalva feita pelo político é que a participação popular ocorre de forma concomitante à atividade dos legisladores, não podem ser concorrentes. Ele reivindica que todas as instâncias legislativas sejam respeitadas por serem os representantes legítimos eleitos pelo povo. “São instâncias da democracia, do estado democrático de direito. Elas têm que ser preservadas e, evidentemente, respeitadas, consolidadas”, sublinha. 

O processo do OP ajudaria, justamente, a potencializar as ações do poder público. Olívio usa a figura de linguagem de uma lavoura, em que a melhor proposta é aquela enraizada e fomentada por uma discussão orçamentária que não se restringe às salas do executivo.

“A proposta vai pra eles não só com uma discussão de uma peça técnico-burocrática que o executivo montou, mas uma peça que o executivo propôs e foi a campo discutir com o maior número de pessoas possíveis. Quando ela chega para os (poderes) legislativos, chega fecundada por essas coisas que a cidadania propôs, que também vai acompanhar e pressionar legitimamente na hora da proposta ser votada. Os legislativos têm todo o direito de alterar, propor, dispor etc e tal. Mas já é uma peça fecundada por essa discussão ampla, aberta com a comunidade, também os legislativos vão ter um cuidado especial para fazer essa peça ser funcional, ser respeitosa das definições propostas também por essa discussão ampla, e isso é positivo para a democracia, isso fortalece as instituições democráticas”, comenta Olívio.

OP como base para o PPA

Em 2023, o governo federal precisa organizar, discutir, elaborar, votar e sancionar o Plano Plurianual. É uma imposição da lei a todos os presidentes eleitos para os três anos seguintes da sua administração e o primeiro do governante seguinte. Desta vez, a Secretaria-Geral da Presidência e o Ministério do Planejamento e Orçamento anseiam adotar um modelo mais participativo aos moldes do OP.

Para Olívio Dutra, já há maturidade no processo democrático para repetir a proposta. “É um processo que desencadeia em outro processo democrático, de conscientização democrática, de aplicação do dinheiro público de forma correta, eliminando todo e qualquer processo de apropriação da coisa pública, do dinheiro público, do espaço público pelo interesse privado, particular, pessoal. O orçamento participativo, com essa visão, tem uma enorme importância no sentido de a democracia ser resgatada, consolidada de baixo pra cima”, afirma. 

Ele defende isto não como uma bandeira apenas do Partido dos Trabalhadores. Ele admite que até mesmo outras administrações estaduais e municipais distantes do PT no espectro político assumiram programas assemelhados. E que até mesmo o próprio partido deixou de explorar as possibilidades do OP em governos federais anteriores, como na primeira gestão do presidente Lula, quando Olívio foi ministro das Cidades.

“Acho que nós mesmos, nos municípios em que desenvolvermos esse projeto, ficamos aquém das potencialidades dele por várias condições: as situações concretas, as conjunturas, os interesses, a cultura própria. Isso é uma cultura por ser conquistada, mas ela tem um alastramento importante, pois tem muitas prefeituras desenvolveram algumas experiências parecidas até”, sugere.

Social das redes

A única apreensão que incomoda Olívio é o esfriamento das relações e o distanciamento daqueles moradores das regiões mais periféricas. Por isso, ainda que reconheça o potencial das ferramentas tecnológicas em aproximar essas pessoas do poder decisório, alerta para que isto não se torne motivo de excluí-los do processo. “É preciso trabalhar essas experiências. Tem novos desafios a cada hora, a cada dia. A ciência e a tecnologia colocam novos desafios. ‘Ah, não, mas agora nós não precisamos nos reunir pessoalmente, nós podemos discutir as coisas via internet’. Olha, nada contra essa tecnologia, contanto que ela aproxime as pessoas e não as distancie. Não ponha frieza nessas relações para construir coisas do interesse coletivo, público, e não para tantas pessoas em situações das mais diferenciadas, variadas, que vivem no mesmo espaço e devem viver bem”, comenta.

Assim, tanto PPA como OP não devem ser encarados como documentos fechados, mas processos em construção que demandam, mais do que obras, o exercício democrático na busca do bem comum.

“É um sonho, mas sonhado por milhões e com compromisso vai se tornar realidade. E vai se aperfeiçoando, não se limitando, se reduzindo. O OP tem a maior relação possível direta com a cidadania. A ciência e a tecnologia, a comunicação imediata, ampla, ajuda, mas tem que ajudar a democracia. E não uma decisão aventada que um grupo X determina, coloca no papel e leva para a comunidade homologar. Isso não é orçamento participativo”, assevera.

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