Reportagem

Prefeitura de Porto Alegre aplicou apenas 20% do Orçamento Participativo em 2022

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Prefeitura de Porto Alegre aplicou apenas 20% do Orçamento Participativo em 2022 Foto: César Lopes / PMPA

Gestão Melo usou apenas 2 dos 10 milhões no ano passado. Enquanto isso, governo federal usa modelo do OP no seu plano de investimentos

Em 2022, Porto Alegre tinha 10 milhões de reais destinados ao Orçamento Participativo (OP), mas aplicou apenas 2 milhões, 20% da verba reservada. As informações são da Secretaria Municipal de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV). Agora, a Prefeitura promete incorporar os 8 milhões não aplicados aos 15 milhões de reais aprovados na Lei de Diretrizes Orçamentárias deste ano. Seriam, então, 23 milhões de reais à disposição da população para demandas consideradas prioritárias pelas comunidades das 17 regiões e seis temáticas que compõem o OP.

Apesar do aumento, o valor é inferior ao de anos anteriores. Os recursos destinados ao OP vêm caindo progressivamente, como o Matinal revelou em 2020. Em 2018, foram previstos 33,4 milhões de reais, que caíram para 21,8 milhões em 2019 e, no ano seguinte, baixaram para 17,8 milhões. A perda de protagonismo do OP na cidade que o lançou ao mundo vai de encontro à importância dada pelo novo governo federal, que pretende incorporar o modelo participativo ao Plano Plurianual.

A Prefeitura justifica que a redução das verbas não se deu por descaso. O que mudou foi o modelo de aplicação da verba pública. “Antigamente, as comunidades apontavam tudo que elas precisavam no ciclo do OP, e o governo escolhia uma parte desses apontamentos para se comprometer. O prefeito (Sebastião) Melo, buscando a questão de transparência, inverteu essa lógica, e a implantamos um modelo já usado em outras cidades, inclusive de outros países, de determinar um valor e colocar à disposição da comunidade exatamente este valor para dividirem. Essa foi a grande mudança”, explica o diretor de Participação Cidadã, Lucas Vasconcellos.

O formato que consagrou o OP consistia na escolha de demandas, pelas  comunidades, em plenárias regionais. Nelas, os cidadãos elegiam as prioridades e levavam à prefeitura para serem incluídas no orçamento do ano seguinte. Mas, em algumas ocasiões, o valor extrapolava o que era possível realizar – o que motivou o atual prefeito a optar pela lógica de cidades como Madri, na Espanha, e estabelecer uma espécie de “teto” para o que pode ser solicitado.

“As gestões se comprometiam com 100 milhões (de reais) em demandas e executavam 2 (milhões), 3 milhões. Então, o prefeito pensou: ‘Prefiro colocar um valor real e exequível’”, justifica Vasconcellos. “A Prefeitura calcula o orçamento, entende um valor que tem capacidade orçamentária e disponibiliza só esse valor. Por mais que (seja) menor, ao menos nenhuma demanda vai deixar de acontecer por falta de verba.” Na prática, o Município reconhece que enxugou o orçamento, o que é considerado como um enfraquecimento da participação popular. “Acho pouco o que é disponibilizado. São 17 regiões e seis temáticas. Não chega a 1 milhão (de reais) por grupo. Não construo uma creche. Como vou demandar uma escola? Já largo sem dinheiro. A Prefeitura divulgou superávit, vamos ver se conseguimos aumentar um pouco”, pleiteia o conselheiro de Educação, Esporte e Lazer, Roberto Jakubaszko, que também é delegado na região do Centro.

Para ele, as atualizações no processo são comuns e até esperadas com a troca de governos. O que o preocupa é a descaracterização de um modelo consagrado há 34 anos na Capital. “O processo perdeu um pouco de participação. A gente espera que volte a ter brilho próprio. Está meio chamuscado”, define.

A SMGOV não informou até o fechamento desta reportagem as obras em que foram aplicados os 2 milhões de reais empenhados no ano passado. De janeiro até o final deste mês, o governo municipal executa somente o que ficou pendente de 2022, enquanto os conselheiros realizam os debates e reuniões regionais temáticas para escolher as demandas de 2023. Entre o que foi realizado no ano passado, destacam-se os pedidos relacionados às temáticas da cultura e aqueles referentes ao bem-estar animal ou pavimentação de ruas. De acordo com Vasconcellos, são aqueles de execução mais fácil e acessível às secretarias. 

Há ainda a expectativa de diversificar esta participação na próxima assembleia geral, prevista para ocorrer em julho ou agosto, a exemplo da que reuniu 8 mil pessoas em 2022. “O OP forma cidadãos, além de coletar demandas. É uma oportunidade de os cidadãos dos espaços mais periféricos poderem, dentro do Poder Executivo, ter um espaço e apontar suas necessidades”, completa o diretor de Participação Cidadã.

Considerando os efeitos da pandemia nos cofres públicos e na própria realização dos encontros do OP, Jakubaszko considera que houve uma  retomada do processo de participação popular. Na gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), em 2017, houve um congelamento de novas demandas por dois anos, e até mesmo no período anterior, entre 2013 e 2016, com José Fortunati (então no PDT) à frente da administração municipal, a discrepância entre o que era demandado e o que era executado era enorme. 

Precursor do OP, Olívio Dutra vê retrocesso

O modelo de Orçamento Participativo remonta às assembleias intersindicais, nos anos 1970, durante a ditadura militar, mas se tornou um projeto de governo na gestão do petista Olívio Dutra (1989-1993) à frente da prefeitura. Por mais que tenha sofrido outras modificações ao longo dos anos, o OP buscava aprimorar a participação dos cidadãos, não afastá-lo das decisões. A proposta atual, para ele, retrocede ao período anterior, em que prefeitos reservavam uma verba e cediam a grupos apoiadores sem o caráter educativo do OP. 

“Isso acaba tendo fins eleitoreiros. Vai formando uma base na cidadania que considera bondade do prefeito que tem aquele dinheiro e não precisa discutir a origem. O orçamento tem duas pernas: receita e despesa. Não é um Saci Pererê, que salta com uma perna só. Tem que estar calcado na ideia que a receita e despesa sejam discutidas conjuntamente. É importante que a discussão do orçamento participativo não seja para discutir a despesa e, em outros setores, a receita. Aí não está evoluindo, está retrocedendo”, diz.

Olívio relembra, como anedota, uma reunião entre líderes sindicais e um gestor público que reclamava do “cobertor curto” do orçamento. Ele alegava que, se cobrisse uma área, deixaria outra desguarnecida. Uma trabalhadora da indústria têxtil, então, saiu-se com a resposta mais genuína. 

“Ela disse que esse cobertor de que ele falava não tinha ido para a fábrica, para os trabalhadores verem a espessura, a largura, o material, com a maior naturalidade. É importante que essa proposta seja debulhada didaticamente, pedagogicamente, com a população. Não é coisa milagrosa. É uma construção, precisa ter paciência, determinação, encarar a democracia como uma obra aberta a ser sempre aperfeiçoada com a participação do povo. Não uma tática, mas com uma estratégia permanente. São aspectos culturais, políticos, que possibilitam que o orçamento seja de construção coletiva, cidadã, participativa”, completa Olívio.

PPA projeta mais um P, de Participativo

Embora venha perdendo prestígio no âmbito municipal, o governo federal pretende adotar o modelo do OP no Plano Plurianual (PPA), que define as diretrizes e metas da administração pública federal para os quatro anos seguintes. 

Uma matéria do g1 revelou que Secretaria-Geral da Presidência da República, chefiada por Márcio Macêdo, e o Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), comandando por Simone Tebet (MDB), concentram os esforços para viabilizar a versão nacional do modelo. O encontro, que deveria ocorrer na semana passada, ainda não aconteceu, mas deve entrar na agenda do governo esta semana, como apurou o Matinal.

Em um evento da Semana Internacional da Mulher 2023, ocorrido nesta segunda-feira, dia 6 de março, Tebet destacou que o PPA deverá conter um capítulo dedicado às mulheres e às questões de gênero. “Sem dinheiro voltado para políticas públicas para as mulheres, nós não vamos avançar”, disse.

Já a secretária de Planejamento do MPO, Leany Lemos, que já ocupou a secretaria estadual de Planejamento, Orçamento e Gestão e a presidência do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), confirmou que fará fóruns regionais, em abril e maio, e disponibilizará uma plataforma para sugestões. “Planejar não é só uma atividade do governo, é de todos nós, da sociedade brasileira, da academia, do setor produtivo, das associações, dos cidadãos”, comentou em um evento na terça, dia 7, promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

A elaboração do PPA acontece por meio de um projeto de lei proposto pelo Executivo e submetido ao Congresso Nacional até quatro meses antes do encerramento do ano. O desafio da Secretaria-Geral da Presidência e do Ministério do Planejamento será definir quais serão as prioridades nos próximos anos e apresentá-las aos parlamentares até agosto, já que ele precisa ser avaliado e votado pelos congressistas antes de retornar para a sanção presidencial. Outro desafio será definir todos os propósitos almejados para que, conforme determina a Constituição Federal, os planos e programas nacionais, regionais e setoriais sejam elaborados em consonância com o PPA. 

“Não sei como o governo federal vai interagir com as demandas das comunidades daqui de Porto Alegre, porque o Executivo municipal acaba estando muito próximo das pessoas, a dialogamos com eles, vemos as necessidades no dia a dia, in loco. O governo federal, por óbvio, tem essa distância”, observa o diretor de Participação Cidadã da prefeitura de Porto Alegre. Mas achamos muito importante cada novo espaço de democracia participativa”. 

A frase do gestor vai contra políticas implementadas pelo próprio Sebastião Melo, que desde o início da gestão apresentou projetos para enfraquecer os conselhos municipais, outra instância importante de participação popular. Uma das leis, aprovadas pela Câmara Municipal no ano passado, retirou o poder de fiscalização (o caráter deliberativo) do Conselho Municipal de Educação (CME) – o tema está sendo estudado pelo Ministério Público a pedido de ex-conselheiros. Melo tentou fazer o mesmo com o Conselho Municipal de Saúde (CMS), obteve vitória no legislativo na aprovação do projeto, mas virou alvo do MP e teve seus efeitos barrados pela Justiça. 

Se sair do papel e ganhar as redes, conforme os planos do governo Lula, o PPA Participativo pode implementar uma proposta que não foi realizada nem mesmo nas gestões anteriores do PT, com Dilma Rousseff e ele mesmo na Presidência. Olívio, que liderou o Ministério das Cidades no primeiro mandato de Lula, acredita que as ferramentas disponíveis podem ser aliadas no exercício pleno da democracia. “Nada contra essa tecnologia, contanto que ela aproxime as pessoas e não as distancie. Não ponha frieza nessas relações para construir coisas do interesse coletivo, público, para tantas pessoas em situações das mais diferenciadas e variadas”, aponta.

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