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Paciente que morreu de covid-19 recebeu proxalutamida em emergência privada da Santa Casa

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Paciente que morreu de covid-19 recebeu proxalutamida em emergência privada da Santa Casa Com erro de grafia no nome do remédio, o prontuário orientava médicos intensivistas a não suspenderem o uso do fármaco ao paciente. Reprodução: fonte anônima/Matinal


Remédio experimental foi usado de forma irregular. Santa Casa de Porto Alegre não desmentiu prontuários que apontam uso de proxalutamida e disse assegurar a “autonomia médica” no hospital

Prontuários médicos mostram que um médico da emergência privada da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre receitou proxalutamida, um remédio experimental sem registro no Brasil, para um homem internado por covid-19 no hospital. O caso ocorreu em abril de 2021.

O paciente, que tinha cerca de 45 anos, morreu menos de 10 dias após iniciar o tratamento. O Matinal teve acesso às imagens do prontuário e ao nome do falecido por meio de uma fonte anônima, que indicou que a receita foi prescrita pelo médico pneumologista Luciano Corrêa, responsável pelo tratamento do homem e membro do corpo clínico do hospital.

Na ocasião, o tratamento com o fármaco teria se limitado ao paciente particular de Corrêa. De acordo com a fonte anônima, na época, o uso foi permitido pela chefia do pavilhão Pereira Filho, setor da Santa Casa onde pacientes com covid-19 eram atendidos. A justificativa era que estaria sendo feito o “uso compassivo” do remédio e que a prescrição seria protegida pela “autonomia médica”. 

A proxalutamida é um remédio inútil contra o coronavírus e sem registro no Brasil. Ainda em fase experimental, o fármaco foi criado para tratar o câncer de próstata por meio do bloqueio dos efeitos da testosterona no corpo. No entanto, desde 2020, a proxalutamida tem sido tratada como a “bala de prata” contra a covid-19 por médicos que promoveram seu uso indiscriminado por meio de testes clínicos clandestinos, não autorizados pelos órgãos competentes.

O medicamento só poderia ser usado no País no âmbito de pesquisas aprovadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) – à época dos prontuários, não havia autorização para uso na Santa Casa ou em qualquer outro lugar do País que não em uma clínica de Brasília. Já o “uso compassivo” é um tipo de autorização assistencial concedida a remédios novos e não registrados, mas com potencial para salvar vidas. A modalidade requer aval da Anvisa, o que nunca houve para o antiandrogênico, conforme relatado pela agência ao El País no ano passado.

Sem que houvesse autorização da Conep ou da Anvisa para uso do remédio no hospital, paciente da Santa Casa recebeu a proxalutamida como se fizesse parte de um “estudo”. Reprodução: fonte anônima/Matinal
Sem que houvesse autorização da Conep ou da Anvisa para uso do remédio no hospital, paciente da Santa Casa recebeu a proxalutamida como se fizesse parte de um “estudo”. Reprodução: fonte anônima/Matinal

Autonomia macabra

Nos prontuários a que o Matinal teve acesso, a proxalutamida era referida como “a medicação do estudo”. Conforme relatado pela fonte anônima, o argumento de que o paciente estaria seguindo um “protocolo de pesquisa” seria usado por Corrêa para evitar que outros médicos suspendessem a medicação.

Entre fevereiro e abril de 2021, uma série de experimentos irregulares com o remédio foi promovida em unidades médicas do Amazonas, do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Os testes foram coordenados pelos médicos Flávio Cadegiani, um endocrinologista de Brasília, e Ricardo Zimerman, infectologista do Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre, hospital que também serviu de campo de testes para a droga, conforme denúncia do Matinal de agosto de 2021. Os experimentos acumulam irregularidades que vão desde o processo de consentimento à negligência quanto aos riscos de malformação fetal.

Por conta de relatos de supostos efeitos milagrosos da proxalutamida no âmbito desses estudos clandestinos, antiandrogênicos foram adotados por médicos entusiastas do chamado “tratamento precoce”, um kit de medicamentos ineficazes contra a covid-19, como cloroquina e ivermectina, que ao longo da pandemia foi indicado por médicos e políticos como alternativa ao isolamento social, às máscaras e às vacinas.

Corrêa e Zimerman são citados em um post de agosto de 2020 no blog do comentarista Políbio Braga como médicos gaúchos que indicam o “tratamento precoce”. Conforme o post, o médico da Santa Casa seria um dos colegas de confiança de Zimerman. “Foi o Dr. Ricardo que me passou os nomes em off”, escreve a publicação, que reproduz uma mensagem de WhatsApp. “Estes cujos nomes te passei não têm medo de nada e tratam com hidroxicloroquina e outros remédios”, revela o post. 

Além de Corrêa, a lista também inclui o pneumologista Christiano Perin, ex-chefe da UTI do Hospital da Brigada Militar, que participou do experimento com proxalutamida feito na unidade militar. 

Sem comentar o uso do antiandrogênico em sua emergência privada, a Santa Casa de Porto Alegre disse ao Matinal que “jamais recomendou o protocolo de tratamento precoce ou outras drogas, exceto em casos de pesquisa clínica”. “Ao mesmo tempo, a Instituição assegura o direito da autonomia médica, no âmbito da relação médico-paciente”, afirmou o hospital. 

O Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) também foi contatado para comentários e confirmou o recebimento do e-mail, mas não retornou até o fechamento deste texto. Já Corrêa, Zimerman e Cadegiani não responderam às tentativas de contato da reportagem.


Post do início de 2021 nas redes sociais indica Ricardo Zimerman e Luciano Corrêa como médicos que receitam o tratamento precoce em Porto Alegre. O post também diz que o pavilhão Pereira Filho da Santa Casa é o único “que utiliza o tratamento precoce para covid-19” na Capital. Reprodução: Instagram.

Justiça tardia, tratamento precoce

Apesar de Zimerman ser um dos responsáveis pelo uso da proxalutamida no RS, a droga foi importada ao Brasil pelo endocrinologista Flávio Cadegiani, coordenador principal dos estudos no País. De acordo com a Anvisa, apesar do médico ter tido autorização para testar a droga em Brasília em até 550 pacientes, o quantitativo importado foi “chocante” e incompatível com os documentos apresentados à agência. 

Entre agosto de 2020 e maio de 2021, Cadegiani importou mais de 58,9 mil pílulas da droga e de placebo, número suficiente para “testes” em ao menos 1,4 mil pessoas, considerando o protocolo usado pelo grupo no Hospital da Brigada Militar. O número supera até mesmo a soma dos pacientes incluídos nos estudos clandestinos conhecidos – cerca de 1 mil, conforme registros na plataforma Clinical Trials.

Por esse motivo, a agência revogou a resolução que regulava a importação de remédios para uso científico no ano passado e a substituiu por outra, mais restritiva, posto que o médico teria se utilizado de uma brecha para realizar as importações irregulares – Cadegiani responde a um processo por infração sanitária pelo caso, que aguarda julgamento. Desde 2021, a agência produz um dossiê de investigação para tentar rastrear qual foi o destino dos quantitativos excedentes à autorização concedida para uso em Brasília.

Por conta desses experimentos, Cadegiani acabou indiciado por crimes contra a humanidade no relatório final da CPI da Pandemia, produzido pelo Senado Federal. Atualmente, o Ministério Público Federal amazonense investiga 200 mortes de pacientes que participaram de um estudo com o remédio no estado, coordenado pelo médico e por Ricardo Zimerman. No caso do Hospital da Brigada Militar, investigações também estão sendo conduzidas no âmbito do MPF gaúcho.

Hoje, estudos científicos já comprovaram a ineficácia do uso de antiandrogênicos contra o coronavírus. De acordo com um estudo sueco, a classe de medicamentos pode cortar o efeito de outros remédios eficazes e de uso consagrado contra a doença, como os corticosteróides, o que pode atrasar a recuperação de doentes.

Na última semana, Cadegiani e Zimerman tiveram um estudo que indicava que a proxalutamida funciona contra o coronavírus removido de uma revista científica. O estudo havia sido publicado na Frontiers in Medicine, que retratou o artigo após analisá-lo e encontrar falhas metodológicas graves na pesquisa. É o segundo artigo do grupo que é retratado de publicações por suspeitas de má conduta científica e infrações éticas.
Hoje, Zimerman cobra cerca de R$ 850 por consulta, nas quais receita remédios do kit covid ou emite atestados que liberem pacientes de se vacinarem contra a doença. Já Cadegiani cobra R$ 1290 por consulta em sua clínica de Brasília, que tem foco em medicina do esporte e emagrecimento.

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