Ignorados pelo poder público, grupos defendem proposta de reocupação do Cais Mauá pela cultura
Diretrizes propostas por professores da UFRGS e Coletivo Cais Cultural Já vislumbra um cais autossustentável a partir de alienação do setor de docas. Trabalho, porém, não chegou a ser apresentado ao Governo do Estado
Em tempos de debates e projetos acerca do futuro do Centro de Porto Alegre, um grupo formado por professores e estudantes de pós-graduação da UFRGS e o Coletivo Cais Cultural Já apresentou as diretrizes de sua proposta para ocupação do Cais Mauá. A ideia é modificar o espaço evitando um processo de gentrificação e torná-lo uma referência cultural da cidade, tanto gastronômica quanto profissional, além de autossustentável, a partir da alienação das docas – estruturas situadas na ponta do cais, já mais próximas à rodoviária.
As diretrizes foram apresentadas em uma entrevista coletiva à imprensa na sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil-RS, a poucas quadras do Cais Mauá. O conteúdo completo está disponível neste arquivo pdf, que batiza o projeto de “Cais do Porto Cultural”. Além de detalhar a proposta, o grupo reivindicou diálogo com os governos estadual e municipal – algo que, conforme eles, não ocorreu até o momento, pois as tentativas de contato teriam sido ignoradas por representantes das duas esferas do Executivo.
A proposta dos grupos busca enfatizar a manutenção de um cais público. Professora do Departamento de Urbanismo da UFRGS, Inês Martina Lersch lembrou que desde a antiga concessão – rescindida pelo governo Eduardo Leite – o cais está fechado à população. E, com isso, se degradando. As propostas de revitalização até aqui não contemplam, para eles, uma eficiência na retomada do uso do local.
“Governos utilizam o Estado para se apropriar do que é público, ao invés de defendê-lo”, criticou o professor Eber Pires Marzulo, também do Departamento de Urbanismo da UFRGS. Ele enfatizou que as diretrizes criadas nos estudos apontam o caminho para uma ocupação do cais “através da cultura”.
Compensações desde alienação das docas ao dia a dia de eventos
Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS, Luciano Fedozzi detalhou como essa ocupação ocorreria: a criação de um fundo para execução de obras de restauro gerado com a alienação da área das docas. Fedozzi ressaltou que o futuro das docas não deve ter fins residenciais, justo para evitar o que considerou a “privatização” do local. Diferente da ideia da Prefeitura, que liberaria prédios de até 200 metros de altura no Centro, o projeto trabalha com o teto de 52 metros para os empreendimentos a serem construídos no local – o máximo permitido pelo Plano Diretor para a região.
O estudo concluiu que seria possível arrecadar entre R$ 64,3 milhões e R$ 94,2 milhões com a alienação das docas do Cais do Porto. O montante já seria suficiente para recuperar os armazéns, cuja reforma foi orçada em R$ 45 milhões numa pesquisa anterior. “Restaurados os armazéns, o seu uso deve ser autossustentável a partir da geração de recursos por empreendimentos culturais e sociais, além de alguns comerciais”, sugere a proposta de diretriz. “Se o argumento é falta de recursos, há alternativas”, reiterou Fedozzi. “É importante demonstrar que nós não estamos frente àquela ideia que ficou muito marcada a partir dos anos 1980, de que não há alternativa a não ser a privatização de todos os espaços, de toda a sociedade e de todos os serviços públicos”, frisou o professor. Fedozzi participou da elaboração do Orçamento Participativo, outro projeto de peso da cidade, e sobre o qual relatou sucessos e limitações da iniciativa neste artigo da revista Parêntese. que ganhou de outro grande projeto de Porto Alegre
Revitalizados, os armazéns e demais espaços do cais passariam a fazer jus ao nome da proposta, sendo destinados a atividades ligadas à cultura, por meio de artes e eventos, além de receber empreendimentos gastronômicos de médio e pequeno porte. Os armazéns receberiam de exposições a espetáculos e contribuiriam tanto para os eventos quanto para a autossustentabilidade do cais, num sistema de compensações. “Os estudos mostram a viabilidade econômica e comercial, tanto no campo artístico como no de gastronomia e lazer”, afirmou o professor Pedro Almeida Costa, da Escola de Administração da UFRGS.
Citado recorrentes vezes quando se fala de uma proposta para o Cais Mauá, o Puerto Madero da capital argentina Buenos Aires não foi considerado um exemplo a ser seguido na capital gaúcha pelos professores. “É absolutamente defasado”, enfatizou Marzulo. Martina Lersch citou o exemplo do porto de Rosário, também na Argentina, como um modelo a ser estudado.
Diálogo fechado
“Mas depende de um projeto de uma boa vontade dos governos do Estado e do Município em abrir diálogo”, ponderou o professor Fedozzi. E aí reside uma crítica do grupo. Segundo ele, foi registrado pedido de audiência tanto com o governador Eduardo Leite (PSDB), em dezembro de 2020, quanto com o prefeito Sebastião Melo (MDB), em janeiro de 2021. “Até agora não houve respostas”, reclamou. Há, por ora, uma interlocução ocorre via Legislativo. A deputada Sofia Cavedon (PT) e o vereador Leonel Radde (PT) criaram frentes parlamentares, respectivamente na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal, para tratar do assunto.
Atualmente, o consórcio Revitaliza realiza um estudo de viabilidade de revitalização do Cais Mauá. O consórcio venceu a concorrência do BNDES para realizar estudos de mercado e arquitetônicos para definir o modelo que pode ser adotado para a área no futuro, se concessão, parceria-público privada ou outro.
Nesta quinta-feira, 25 de novembro, o consórcio irá realizar um workshop sobre o trabalho realizado nos últimos seis meses. O objetivo é apresentar os conceitos básicos do masterplan e particularidades do projeto.
Cais x Centro+
A proposta dos grupos vem a público em um momento que a Prefeitura articula a viabilização de projetos relacionados ao Centro+, um conjunto de iniciativas e propostas, que inclui até a revisão do Plano Diretor especificamente para a região central. A princípio, as diretrizes para o cais focam de maneira restrita ao cais, mas os professores destacaram que inevitavelmente dialoga com a vizinhança. “O intuito do estudo não foi de desenvolver projeto arquitetônico”, explicou a professora Martina, defendendo um concurso público de arquitetura para isso. “Entendemos que as informações aqui sistematizadas servem de subsídios para este edital, que deve ser aberto e democrático”, explicou.
O conceito adotado nas diretrizes, contudo, difere do da Prefeitura, que visa a construção de arranha-céus: “O centro não precisa de um grande projeto de revitalização, mas de um programa de acolhimento das pessoas”, afirmou Martina. “Eu não preciso ir a um shopping para fazer compras, eu posso fazer na Rua da Praia.”