TRF-4 suspende desocupação de área habitada por indígenas no Morro Santana
Juíza considera desnecessária reintegração de posse com uso de força policial
A juíza federal Tani Maria Wurster, convocada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), suspendeu na noite de terça-feira, dia 21, a desocupação da área no Morro Santana em disputa entre as comunidades indígenas Kaingang e Xokleng e a Maisonnave Companhia de Participações. Com esta decisão (leia a íntegra), fica anulada a liminar anterior, que previa reintegração de posse forçada com apoio de força policial em caso de descumprimento dentro do prazo estabelecido.
Para conceder esta nova liminar, a magistrada considerou que, em primeiro lugar, há consenso entre as partes em buscar solução para o conflito. Além disso, ela leva em consideração uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de novembro do ano passado, que prevê a instalação de Comissões de Conflitos fundiários pelos Tribunais em casos de reintegrações de posse e uma norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece diretrizes e procedimentos para garantir o direito dos povos indígenas à Justiça. Portanto, na decisão, Wurster sublinha que deve ser adotada uma “solução consensual para o conflito”.
Segundo o advogado Dailor Sartori Junior, que representa a comunidade no processo, a comunidade comemorou a decisão. “Cada dia ou semana que ficam, aumenta o sentimento de pertencimento. Já estão integrados à comunidade, tem colheita de alimentos. Foi uma pequena vitória”, define.
A liminar da magistrada é parcial, pois não foi julgado o mérito da causa – o que é feito pela turma recursal. Por ora, o processo deve ficar suspenso até a mediação pelo comitê criado pelo TRF-4 para a resolução de conflitos, ainda sem prazo para acontecer.
O local em disputa é de propriedade da Maisonnave, que pretende erguer 11 torres no endereço. Ele chegou a ser hipotecado para garantir que a empresa pagaria dívidas milionárias junto ao Banco Central e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Mas, passados 30 anos sem pagamento, a hipoteca caducou em 2018, e o terreno ficou para a companhia.
Valor histórico, cultural e ambiental
Como o Matinal mostrou na semana passada, pela liminar anterior, a comunidade Gãh Ré deveria ser realocada para a área indígena mais próxima, a do Cantagalo, que é de ocupação originária de outro povo, os Mbya Guarani. Porém, para o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin), a medida é “racista, abusiva e demonstra total desconhecimento acerca das culturas, dos saberes e dos modos de ser e viver dos povos indígenas no Brasil”.
Representante dos indígenas, Sartori critica este pensamento como “visão integracionista”, pois pretende que um grupo menor seja obrigado a adaptar suas características próprias para se adequar ao grupo maior. Para ele, a decisão seria “inócua” e jamais chancelada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). “É uma prática que ficou no passado. Caso seja inevitável (a desocupação), é preciso que haja uma alternativa digna, que a comunidade aceite, e ela não foi consultada para isso”, afirma.
No recurso apresentado ao TRF-4, os advogados que representam os indígenas destacam a relação tradicional da comunidade com o território baseada em estudos desenvolvidos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Entre os argumentos, estão que “os Kaingang nunca deixaram de acessar o Morro Santana para diversas finalidades, como a coleta de materiais de artesanato, acesso a locais sagrados e ritualização com a medicina tradicional”.
Outra argumentação é feita com base em uma nota técnica da bióloga Tatiane Takahashi Nunes. De acordo com a especialista, a conservação do remanescente de Mata Atlântica no Morro Santana é fundamental para a preservação de 17 espécies da fauna nativa, como o bugio ruivo e o gato maracajá, ambos listados como vulneráveis pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“A conservação do Morro Santana contribui para a manutenção e qualidade de vida de Porto Alegre, além do local ser de grande importância para pesquisa científica e geração de conhecimento sobre a biodiversidade do local, contribuindo também para estabilidade de microclima, promovendo conforto térmico, auxiliando na drenagem e escoamento das águas pluviais, proteção do solo, nascentes e corpos d’água. A construção de qualquer empreendimento na área coloca em risco a fauna e flora local, como o caso do gato maracajá, (cujo) último registro fotográfico foi no ano de 2009 e relatos de visualização da espécie no ano de 2022”, conclui Nunes no estudo.