Crônica

Continuação: “Dia de matar porco”

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Continuação: “Dia de matar porco”

Primeira parte publicada dia 23 de julho, leia aqui.


Atravessava o Rio Grande do Sul, viajando de carro de Porto Alegre a Uruguaiana, quando resolvi parar em um restaurante de beira de estrada para almoçar e esticar as pernas. Não sei exatamente em que município ficava, acho que em Cachoeira do Sul, embora a rádio que eu ouvia fosse de Faxinal do Soturno. Dirigi-me ao balcão, fiz meu pedido e procurei uma mesa próxima à janela. Parecia um restaurante ordinário, sem maiores singularidades, até que, como as cortinas estavam fechadas para conter o sol forte, resolvi observar os detalhes ao meu entorno, entediada que estava. 

Já havia reparado na bandeira brasileira pendurada na vertical, inerte, presa debaixo do suporte da televisão às minhas costas, e estava a observar as imagens grandes em gesso da Virgem Maria e de Santo Expedito sobre um balcão de buffet, ao fundo. Nesse instante, adentraram o restaurante, em fila, cerca de quinze militares. Espiei pelas frestas da cortina e vi estacionados em frente ao prédio dois caminhões com pintura camuflada, daqueles com rodas tipo de trator. Pensei: saíram dali de dentro, os fardados. Alguns instantes depois, entram duas mulheres com crachás de peritas criminais e, pronto, encheu o restaurante onde há poucos minutos eu tentava engambelar o tédio. 

Todos estavam distraídos, conversando com seus companheiros de mesa, comendo ou fazendo seus pedidos, enquanto minha comida sem carne demorava para ficar pronta. Sozinha em minha mesa e sem querer parecer bisbilhoteira das conversas alheias, automaticamente voltei os olhos para cima, onde já havia percebido, sem muita curiosidade, que havia algo escuro pendurado na parede, sobre minha cabeça. Ao fixar os olhos nas duas enormes cabeças de javali empalhadas, com as bocas e olhos escancarados, lembrei que precisava entregar esta crônica, dar continuidade à conversa suscitada pelo dia de matar porco.

O antropólogo Caetano Sordi, em sua tese de doutorado, defendida em 2017, na UFRGS, analisou as controvérsias e reações acerca da “invasão biológica” do Sus scrofa (javali europeu asselvajado), bem como de javaporcos (cruzamento do Sus scrofa com porcos domésticos) no sul do Brasil, a partir de trabalho de campo realizado na região da Campanha gaúcha. Sordi parte do dado de que União Internacional para a Conservação da Natureza considerou o javali um dos cem piores organismos invasores, segundo os índices sobre invasões biológicas da instituição. Baseado no enquadramento do javali enquanto espécie exótica invasora – espécie não-nativa introduzida com cooperação humana, cuja população traz prejuízos para o ambiente que passou a habitar – o Ministério do Meio Ambiente do Brasil, autoriza, desde o ano de 2005, o controle populacional do javali (e do javaporco) por meio da captura e do abate, com arma branca ou de fogo, no Rio Grande do Sul, por tempo indeterminado. Em escala nacional, a permissão de caça vigora desde 2013.

Levantamento realizados por órgãos de imprensa apontam que, entre 2019 e 2021, o número de concessão de certificados de registro pelo Exército Brasileiro triplicou em relação aos anos anteriores. Nos três primeiros anos de governo Bolsonaro, além dos inúmeros decretos facilitadores do acesso a armas de fogo, foram concedidos 193.539 CRs, que autorizam a caçadores brasileiros a possuir até 30 armas, incluindo fuzis, e 90 mil munições por ano. Acontece que, tendo o javali como pretexto, muitos caçadores recebem o certificado de registro sem sequer saberem atirar ou ter maiores proximidades com a “praga” biológica. Teve até vereador bolsonarista louvando publicamente a caça do javali – a única permitida no Brasil – como meio para o armamento da população. Uma conhecida minha, lá no interior do estado, foi tirar satisfação de um vizinho que havia brigado com seu irmão e acabou morrendo despedaçada por um tiro de carabina 9mm, cuja posse era justificada enquanto “arma de caçar javali”. Normal, quem mandou se meter na briga dos homens? Não tinha nada que bater na porta do cara, meter o dedo na cara dele. Praga!

No meio desse tiroteio todo, matar porco à faca fica parecendo até ritual sacrificial. E por falar em faca, eu não sabia dizer ao Demétrio Xavier o que levava mulheres de regiões agropastoris do Rio Grande do Sul a herdarem as facas dos homens de suas famílias, especialmente os avôs. Tenho, tios, primos e irmãos homens, mas quem herdou a faca de meu avô paterno fui eu; minha companheira, do mesmo modo, herdou a faca de prata do avô materno dela. Nem me lembro como veio parar aqui comigo, mas imagino que deixar uma faca, uma arma de contato, para um descendente homem represente, entre muitas outras coisas, honrar a perpetuação de potenciais violências. Me ocorreu essa justificativa para essas heranças um tanto descontínuas, em se tratando de contextos patriarcais tão insistentes, quando a Pam me contou que havia aprendido com uma tia a benzer temporal usando a faca. As armas, assim, saem das bainhas para morarem cravadas nos canteiros da casa. Servem mais para curar, sanar, um mundo já com a “buchada no chão”.

Prova de que não nos deixam de legado meios e modos de matar é que não costumamos herdar chaleiras. Que eu saiba.


Marília Kosby – Antropóloga e poeta. Autora de Mugido (2017) e Alma-caroço: nos rastros de cabras quilombolas que alimentam comunidades de terreiros no extremo sul do Brasil (2021).

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