Ensaio

Escolhemos o amor

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Escolhemos o amor
Por Barbara E. Neubarth, Berenice Sica Lamas, Marilena B. Tanger, Mazlowa M. Heck *

Há um ano, em texto escrito para esta mesma revista digital, afirmávamos nossa perplexidade diante da morte de mais de 130 mil brasileiros. E nos deparávamos com a seguinte questão: mas é preciso?

Passados outros 365 dias, o número cresceu geometricamente e estamos diante de cerca de 610.000 perdas, que, se não são nossos conhecidos, têm nome e sobrenome, têm irmãos, pais, amigos, filhos, esposos, parentes, colegas e, o que parece mais grave, deixam para trás mais de 130 mil órfãos, em uma dita pandemia oculta, que ainda vai exigir de nós, sociedade, um cuidado extremamente diligente. Este número de um órfão por Covid a cada 5 minutos é a prova de que crianças são afetadas sim, e muito. 

O estrago psíquico desta desgraça representa um rombo em nosso tecido social. Estamos mais desacomodados e desconfortáveis, e a cada vez mais se definem os grandes culpados por esta tragédia. Um esquema macabro que marca vidas matáveis, assim nomeadas por Agamben, como fundamento da tanatopolítica, que deforma as leis da linguagem, avançando pelo consentimento discreto à redução da invenção e do riso. 

Mas temos, cá entre nós, que eles no pasarán!


Molecadas

Está em jogo, nestes tempos, uma verdadeira revolução entre códigos, entre o que é certo e errado. Há uma inversão de valores, e grandes conquistas civilizatórias estão sendo duramente atacadas. Nestes ataques, questões de gênero têm sido especialmente atingidas, em afirmativas que beiram ao ridículo, assim: mulheres vestem rosa, homens vestem azul; mulheres casam-se com príncipes que as defendem de vilões; mulher é mulherzinha, que se contenta com o permitido pelo marido e senhor. 

Em um contundente artigo, a antropóloga Isabela Venturosa traça um perfil do que ela chama de sintoma do macho ressentido e ferido. Uma instigante análise, que sugere o quanto as conquistas femininas ameaçam alguns homens de tal forma que estes necessitam mostrar a força varonil a qualquer preço. Assim, nada melhor do que se mostrar de peito ao vento, andando com o corpo para fora dentro de um carro potente; ou melhor, pilotando uma poderosa motocicleta sem a máscara protetora do vírus, que pode ser vista como coisa de covarde.

O que dizer de se postar em meio à multidão, durante uma pandemia, como o faz o chefe supremo entre seus asseclas? 

Nestes acontecimentos, de que valem as leis, para quem se sente um jovem guerreiro disposto a enfrentar a autoridade maior – a constituição federal – rompendo seus limites? O que são as descobertas da ciência, quando se está com a cabeça pré-ocupada em se manter como chefe da horda primitiva? Nestas fases de arroubos juvenis, leis de trânsito são para velhos gagás, e máscaras, distanciamentos, vacinas são para os fracos, os covardes, as mulherzinhas, os maricas. 

Se estas atitudes de burla das leis de trânsito, por exemplo, forem percebidas em um filho adolescente, com certeza teremos que chamar o moleque às falas. Antes que os postes da cidade, tal como imensos falos, assumam o lugar deixado em aberto pela nossa não autoridade e sirvam, os tais postes, para se impor como uma parada à tontería. Infelizmente o que se sabe é, em inúmeros casos, ser esta uma parada fatal.  

O noticiário está se tornando repetitivo quanto às notícias de desrespeito às leis de trânsito e às leis de saúde pública transgredidas nas motociatas país afora. As muitas imagens são prova das contravenções, que até têm merecido multas em alguns estados. 

Mas e daí? Alguém aprendeu com isto? Aprendeu o quê, ao cotidianamente mostrar que infringir regras não dá nada?

O que o pai do clã ensina aos seus filhos? E a sua filha? 

Temos esperança de que em algum momento a menina não pense que isto é natural, quem sabe, parodiando Rosa Montero, talvez a menina possa abrir a goela do dragão e cuspir fogo… 


Passeatas

Ensolarada tarde de sábado. Aproximados 25°. Calor extemporâneo de inverno. A caravana parte do bairro Rio Branco, local da concentração. Seguindo numa Osvaldo Aranha plena de pessoas caminhando, passeando, conversando, comprando, comendo. Parece uma tarde como as do passado, repleta de gente aproveitando o ar livre e o sol. Protegidas pela máscara. 

Também nós vamos conversando, passos nem lentos nem rápidos. Passos-passeio. Rumo à Salgado Filho. Dia de manifestação e protesto. Descendo a João Pessoa, o oceano de gente grita, berra, canta, coreografa, dança. Valores democráticos. 

Impera a diversidade: homens e mulheres, pessoal LBGT+, jovens, idosas, crianças. Negras/os, brancas/os, pardas/os, mulatas/os. Cabelos coloridos, castanhos, grisalhos, loiros. Cabelo pode ser explosão, expressão simbólica de visão de mundo. Longos, curtos, lisos, lisíssimos, raspados, crespos, desgrenhados, arrepiados. Gente bonita, cujos olhos fora das máscaras jorram emoção e cujas mãos carregam faixas, bandeiras e cartazes. Os corpos estão ali manifestando ideias e ideais. 

Como na canção La guerrilla de la concordia, de Jorge Drexler: 

Vamos lançar nossos panfletos no ar, da guerrilha da concórdia, (Amar é coisa de bravo), Corpo a corpo, verso por verso … É uma guerra de guerrilha, E há um comando de poetas suicidas, Rimando nos bueiros, Dizendo, Vamos nos armar, Arme-nos de coragem até os dentes, Por que amor, Amar é coisa dos bravos, Amar é coisa dos bravos. 

As caminhadas em geral mostram um toque de alegria, de esperança, de busca de melhorias bem pontuadas: vacinas, comida na mesa, emprego, liberdade, respeito. Enfim, tudo que move o ser humano na busca, não somente por sobrevivência, mas por solidariedade, empatia, respeito às diferenças.   

A paixão adolescente que nos mobilizou em 1964 continua latente, denotando revolta contra a opressão, com o pouco-caso com a vida humana. Repudiamos também o genocídio instalado através de necropolíticas tão presentes em muitos governos atuais. Por isso vamos às ruas, apenas com nosso corpo frágil e já cansado na caminhada, para evidenciar que a força moral e o espírito não se esgotaram; ao contrário, fortaleceram-se a cada golpe recebido. Queremos deixar para as próximas gerações, um mundo onde elas não desejarão trocar o Playstation por um fuzil. A morte programada não será um ideal de poucos a ser concretizada.

Por tudo isto pensamos como Deleuze, para quem o poder requer corpos tristes, possíveis de serem pelo poder dominados.  Enquanto a alegria, esta não se rende, é pura resistência. A alegria como potência de vida nos leva a lugares onde a tristeza nunca levaria, completa o filósofo francês. O poder necessita da tristeza, pois ela paralisa, abate. 

Em blocos, caminham grupos coesos: variadas instituições, movimentos sociais, forças, trabalhadores, estudantes, mulheres, organizações específicas. Por que na rua tantas representações populares? 

Porque a crise é profunda, há desgosto, insatisfação, indignação. O filósofo Gianotti, que perdemos há pouco, sublinha que a crise é provocada justo por não existirem condições de produção, fato não levado em conta pelo setor econômico. Neste vazio, neste vácuo, entre o trabalho e os desempregados de um lado e os recursos para produção de outro, instala-se uma situação de alienação. E resta uma zona de escuridão. 

Entretanto, na rua, brota a criatividade, gritos, frases, palavras de ordem, cartazes, panfletos, voz e luminosidade. Pessoas nas janelas dos edifícios saúdam os passantes. E, como não poderia faltar, a música, expressão d’alma: estribilhos, canções, cantorias, rimas, refrões. O rumor das gentes escutado a quarteirões de distância.


Entre amores e ódios

Há uma grande diferença entre as manifestações que temos presenciado. Em umas, os corpos movem-se na tentativa de vencer a indolência do coração, a apatia paralisante da melancolia trazendo a leveza revolucionária. Em outras, as pessoas se apresentam com “complementos” a seu corpo: motos, carros, aviões e outros, objetos que representam força, arrogância, frieza, raiva, potência – muitas vezes ocultando a vulnerabilidade. Simbolizando, por exemplo, o velho mito do centauro na mitologia grega, cujo corpo é metade homem, metade cavalo, as potentes e barulhentas motos soam como arautos de poderosos exércitos de testosterona.

Contudo, sempre é bom lembrar, os símbolos são representantes de desejos profundos, especialmente na iminência da perda ou da falta de algo desejado. Não à toa, motos são meios de transporte e exibição, sobretudo entre jovens em busca de provar seu vigor e virilidade.

Neste sentido, há uma motocicleta icônica, especialmente marcada no imaginário latino-americano, por força de uma extraordinária jornada. A viagem de iniciação de um estudante de Medicina e um bioquímico começa marcada pelo hedonismo juvenil dos dois jovens, que querem se divertir, aventurando-se pelos caminhos da Sul América. Mas logo os amigos Ernesto e Alberto são afetados pelas realidades sociais e, de jovens inconsequentes, transformam-se em companheiros preocupados pelas questões que afligem o povo. E iniciam sua luta plantando a bandeira com a luz do sorriso, tão bem retratados na música de Carlos Puebla:

Vienes quemando la brisa

Con soles de primavera

Para plantar la bandera

Con la luz de tu sonrisa.

Aquí se queda la clara,

La entrañable transparencia,

De tu querida presencia

Comandante Che Guevara.  


Conversando entre colegas

Freud, desde 1927, destacara que a cultura de destruição pelo instinto de morte do homem “poderia ser evitada por meio de uma adequada distribuição dos bens entre os homens”. Ele enfatiza a hostilidade primordial que reina entre os homens, afirmando que as paixões instintivas são mais poderosas que os interesses racionais. Em sua metapsicologia, ele constata a dialética fatal da civilização: o próprio progresso desta conduz à liberação de forças cada vez mais destrutivas. Percebe-se que, até o final de sua vida, em 1939 – ele não viveu Hiroshima, por exemplo -, ele não renunciou a ideias pessimistas sobre a natureza humana, os instintos agressivos e destrutivos sobrepondo-se aos amorosos. 

Entretanto, conforme nosso próprio texto do ano passado aqui na Parêntese, a esperança ativa e equilibrista nunca nos abandonará.     

Resgatando outra categoria analisada por Freud – a da subjetividade, definida por ele como também de construção social, cultural, econômica, intelectual – podemos afirmar que a vida psíquica do ser humano atualiza-se somente no convívio grupal, social. Jamais existiria uma passeata de um indivíduo só. A alteridade é também outra categoria fundamental a nossa vida, sobrevivência e na qual se fundamentam os laços de cooperação e colaboração.   

O poeta chinês Tu Mu comenta sobre as qualidades de sabedoria, justiça, benevolência, rigor e coragem de um líder, afirmando que os seguidores não terão dúvidas quanto a punições e recompensas, que haverá flexibilidade para mudanças necessárias e disciplina para o trabalho. A vitória será alcançada. No entanto, impaciência, julgamento precipitado, decisões impensadas podem apresentar consequências desastrosas e danos vitais. Ele sugere “calma, bom senso e planejamento para prevenir e remediar atitudes compulsivas”. 

Se o operário do Chico acabou no chão feito um pacote flácido e, morreu na contramão atrapalhando o sábado, neste outro sábado, a multidão em protesto lúcido cruzou o asfalto como um pacote urgente. Saindo por aí afora, atrás da aurora mais serena…


Na ponta da Redenção

Sentadas na raiz de uma árvore na ponta da Redenção, aproveitamos para um breve descanso. Algumas dorzinhas, joelhos, calcanhares. No outro lado da avenida o mar de gente continuava a desfilar.

Toda raiva e indignação transformavam-se em fé e esperança. Nossos votos de seguirmos hasta siempre, Comandante!, sem perder a alegria. Entre amor e ódio, escolhemos o amor. 


* Todas as autoras são psicólogas.  

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