Ensaio

Não é uma banda nem um livro de lembrar

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Não é uma banda nem um livro de lembrar

Talvez em algum multiverso o escritor angolano Ondjaki esteja sentado em uma cadeira de mogno forrada com delicado veludo verde musgo, numa mesa ampla rodeada de livros raros perfeitamente ordenados em prateleiras de canela e vista para um jardim; neste multiverso, entre uma xícara de chá e um copo de alguma bebida mais quente, ele só escreve. 

Mas não estamos lá. No nosso universo Ondjaki faz poesia na rua enquanto o músico Magdaleno toca sax ou violão e canta. É uma cena bonita. A luz amarelada do poste na calçada reflete-se no meio-fio de acesso à Casa de Cultura Mario Quintana, um antigo hotel que também foi casa de um poeta e hoje é um espaço cultural na rua da Praia, ou dos Andradas, em Porto Alegre. Nada é uma coisa só e nem precisa ser, nem mesmo ter um único nome. Na rua da Praia não há praia e ela mesma tem dois nomes. 

Na noite anterior Ondjaki estava na PUC-RS falando com estudantes e professores do curso de escrita criativa, no Centro de Humanidades, isso algumas poucas horas depois de ter chegado do Uruguai. Se esticarmos a linha só um bocadinho para um antes, ele estava entre feiras, palestras e lançamentos de O livro do deslembramento, editado no Brasil pela Pallas; e antes de antes na sua livraria em Luanda a contar estórias para crianças, onde também tem uma editora. Mas não só isso: este ano, em algum antes que eu já me perdi, teve exposição de fotografia, evento de cinema e lançamento do livro infantil Senhor Feroz. Certamente não é a poltrona verde musgo o lugar da escrita delicada e encantada, mas não menos certeira, de Ondjaki. Como ele consegue, não sei. Eu desconsigo, palavra que conheci com ele e incluí no meu cotidiano. Essa arte capaz de ampliar a linguagem e, por consequência, nossa capacidade de imaginar e sonhar desloca mundos e cria universos, mas os pequenininhos, os que guardam milagres.  

Pode parecer muitas ações para um escritor, a mim soa apenas como desdobramentos de uma unidade, a do desejo. Ou o efeito dos atravessamentos que nos invadem e autorizamos, sem resistir. A consequência é a busca de substrato para criar e fazer pontes ou torções. Quem crê ser a arte linha de uma cor só precisa urgente ver as obras da polonesa Małgorzata Mirga-Tas e da Sueca Sami Britta Margareta-Labba expostas na 59a. Bienal de Arte de Veneza. Ambas compuseram grandes painéis tecidos e bordados pelas mãos (inclusive escrevi sobre elas aqui, na edição de 16 de julho). 

Dificilmente uma arte se faz com uma única cor e traçado. O fio de Ariadne guia porque faz curvas. A linha reta, demasiadamente esticada, está nas mãos das Moiras, e elas estão a cortar o destino sem piedade. Às vezes esse corte brutal está na infância. Se a arte é feita de muitas linhas a literatura é um lais de guia, que bem firma, mas solta fácil. Toda história parece ser uma estória e vice-versa, talvez um “nós” em uma fita de moebius onde, no ponto encantado da torção da fita, faz o impossível de duas paralelas se encontrarem acontecer. 

Curvas, torções e laços… nada mais razoável, considerando o verso em que habitamos e as voltas que fazemos, do que não falar do último livro de Ondjaki de forma lógica, nem fazer uma entrevista, tampouco escrever sobre o espetáculo “Dez dobramentos”, num texto bonito de curadoria. O poeta é um fingidor, já cantou Fernando Pessoa, e Ondjaki é poeta. Inventar estórias é forma doce de mentir. O que ele finge, talvez nem ele saiba. Criar é uma subversão. Este texto mesmo é um invento ou um álibi ou uma mentira. Acreditar, portanto, uma escolha, quase um ato de fé, de há fé to.  

Desdobrando pelo avesso ou começando pelo fim: “Dez dobramentos” é o nome do espetáculo atual da não banda “Sobre o mar”, que já tem dez anos, composta por Ondjaki e Marcello Magdaleno. Antes de “Dez dobramentos” eles apresentaram “Desembarcação”. E, uma vez não sendo uma banda, pode ser qualquer coisa, inclusive uma banda, se quiserem. Dizem que farão uma turnê em 2023 pelo Brasil e arredores. Foi um pouco desta performance, ou uma palinha do que está por vir, que eles apresentaram junto com o lançamento de O livro do deslembramento na Livraria Taverna da rua da Praia sem praia, numa noite amena do inverno gaúcho.

Particularmente eu gosto do jogo de palavras: “Dez dobramentos” me causa simpatias, tanto quanto “Deslembramento” me afeta. Algumas palavras são mundos. Minha filha me chama de deslembrada, e chama muito antes de eu saber do livro. Geralmente me chama assim quando eu perco algo, encerro alguma coisa ou esqueço um castigo. É um desafio aprender a perder, principalmente ideias, certezas e controle…  Na verdade desafio mesmo é fazer escolhas. Sem esses movimentos não há espaço para a vida acontecer. Eu ser deslembrada, lá em casa, é a sorte da minha filha porque nas minhas falhas surge a chance de novas infâncias acontecerem (para ela e para mim).

Deslembrar é verbo de afetação. As palavras são afeto, isca e feitiço, talvez por isso eu as prefira ao silêncio; elas são capazes de mudar rotas e destinos,  de criar pessoas e mundos. É nessa relação dos ditos que os sentidos se (re)constroem. A palavra é ponte. E há algo de fazer laços entre mundos distintos na escrita de Ondjaki, talvez a torção da fita de moebius. Se deslembramento é uma palavra dele, também é da minha filha. Ela riu ao eu ler o título do livron – “Mãe, é sobre você”. E não teriam as infâncias todas algo nosso? 

A infância encantada ou os encantamentos infantis parecem ser um dos fios de Ariadne do escritor. São três livros + um que tem esse lugar como protagonista: Avó Dezanove e o segredo do Soviético (Cia das Letras, 2009), Bom dia, camaradas (Cia das Letras, 2014), Os da minha rua (Pallas, 2021, 2a. Ed), e agora O livro do desmembramento (Pallas, 2022). Mas o encantamento no ato de fazer arte de Ondjaki transborda as letras e vira performance e cinema. A infância não é só um tempo, é um lugar, e uma forma.  

Se a não banda “Sobre o mar” e a performance “Dez dobramentos” parece ter algo de um entre-tempos, o presente possível do improviso de um fluir, O livro do deslembramento parece uma partitura de memórias, de sentir e de partir ou parir.   

Há um pouco de delírio em qualquer teoria e assertiva; por que seria diferente com a memória? Não seria ela também uma espécie de invenção, apenas um prisma em um fractal infinito? Revisitá-la, portanto, pode ser uma chance de compor novas músicas. Um dom do estilo, como versou Manoel de Barros: 

… repetir, repetir – até ficar diferente, repetir é um dom do estilo 

Ou como disse Freud (que uma vez confessou que aonde quer que ele fosse um poeta chegara antes dele):

…repetir, recordar, elaborar… até fazer diferente… 

E o estilo, palavrinha nada ingênua no poema de Manoel de Barros, é próprio do humano, um humano que acontece na relação com um outro.

Por isso dizemos ser a infância o palco primevo de um torna-se(r). Somos atravessados e incorporados pelos outros. Sem um colo, um olhar, um abraço, nem sequer existiríamos: “no princípio, era o verbo, e o verbo se fez carne”, dizem.  

O livro do deslembramento é sobre a infância de Ndalu e seus atrevissamentos – um misto de atravessar com atrevimento… (inventei a palavra, eu acho que inventei, ou estou a mentir que inventei, nem eu sei…). Ndalu, que empresta seus olhos ao mundo, vive em Luanda com seus pais e duas irmãs. O livro traz 12 cenas contadas pelo menino. Entre a força presente na capacidade de rir e a das fragilidades que nos fazem olhar para outros lugares; entre os afetos e os chistes; entre as ilusões de segurança e o caos de alguns dias, numa Luanda intocável, estão os personagens tecidos (ou recitados) por Ondjaki de forma a nos tirar para dançar no ritmo próprio do autor. A mim, às vezes, pareceu um texto falando de despedidas… As das muitas infâncias que se perdem, perdemos, as que partem e as que renascem. Para alguns é a guerra, para outros a violência doméstica, a violência da rua, a bala, o abandono, o abuso, a escravidão ou simplesmente o decurso natural do tempo; em todas haverá um evento a cortar o fio da infância. Mas ela não precisa ser tirada de nós, até porque está gravada no corpo e nas lembranças, talvez precise ser recontada ou deslembrada para poder ser recriada. De qualquer forma, sem partirmos o novo não acontece. Foi preciso deixar a infância protegida com a mãe Demeter para Core virar Perséfone e a primavera existir. Algo se perde, algo se ganha. 

A arte existe porque o real não basta. Para criarmos mundos precisamos de pontes e desse outro que nos olha e instiga curiosidade e desejo e às vezes angústia. O texto de Ondjaki tem a habilidade de nos permitir visitar outros sítios e, quem sabe, se coragem tivermos, brincar de recitar as próprias lembranças e fazer outras através das escolhas que os imprevisíveis encontros da vida nos proporcionam. O imprevisível do tropeço, da falha; o imprevisível do que estará depois da curva, depois da torção e do salto… 

Brincávamos tão bem com isso tudo quando nos faltavam altura e certezas. A bem da verdade, a infância está a acontecer a todo tempo, inclusive num fazer poesia em alguma calçada enquanto Magdaleno toca… Que venha a prometida turnê para 2023. Oxalá possamos celebrar. 


Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br e @samanthabuglione

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