Ensaio

O efeito Proust ao se deparar com certos nomes de prédios em Porto Alegre

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O efeito Proust ao se deparar com certos nomes de prédios em Porto Alegre

Este artigo será mais bem apreciado por pessoas na faixa dos cinquenta anos de idade em diante, porque lida com memórias de longa data. Mas poderá ser uma boa provocação para os mais jovens. E para todos, jovens ou velhos, poderá igualmente servir de inspiração para realizar algumas experiências pessoais e coletivas. E certamente este artigo será mais bem apreciado se a pessoa tiver visitado a exposição “Caminhos de Proust”, da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Se não visitou, corra que ela foi prorrogada até 18 de março. Se não vai ter como visitar mesmo, recupere parte da oportunidade perdida lendo a matéria de Juremir Machado publicada no Matinal.

Ao percorrer as ruas coletando nomes de prédios, identifiquei por vezes certa sensação que se aproxima do que Proust descreveu em sua obra No caminho de Swann. Mais precisamente, uma sensação ligada à emergência de tempos perdidos, no sentido de tempos passados, perdidos porque não voltam mais de modo concreto. Proust narra lembranças infantis que subitamente lhe inundaram ao entrar em contato com o aroma de um chá e o gosto de um biscoito. Tais lembranças evocaram uma pessoa, um lugar, certo dia da semana, em período bem remoto de sua vida. 

Todos já passamos por isso, ao olhar certa paisagem, sentir certo cheiro, vestir certa peça de roupa, escutar determinada expressão linguística. Pois me dei conta que certos nomes de prédios evocam em mim memórias, situações, períodos da vida, sensações, pessoas. Tomo aqui tais recordações como algo não apenas individual, mas de conteúdo social, ligado à minha geração e ao meu universo cultural. Por conta disso, algo necessariamente compartilhado com outros e outras. Comecei a chamar tais nomes de prédios, os que me provocam essa sensação, como nomes “de antigamente”. Embora esteja dando aqui uma ênfase ao nome do prédio, há elementos de sua arquitetura (sacadas, por exemplo), que ajudam nesta provocação de memórias, na produção do efeito Proust.


Ed. Shanadoo

Foi o que aconteceu ao me deparar, na rua Duque de Caxias, com o Ed. Shanadoo. Embora a grafia não seja a mesma, fui imediatamente invadido por certa música (“Xanadu”), certa artista (Olivia Newton John) e, o que foi mais forte, um ambiente de discoteca dos anos 1980 e eu lá dançando. Fiquei parado certo tempo na calçada, tirei três fotos do prédio (desnecessárias, uma teria bastado). Retomei a caminhada, e lembrei vagamente de um salão de beleza com este nome, cortes de cabelo, um local no centro da cidade de Porto Alegre, onde encontrava amigos, e havia flertes. E a pergunta inevitável: quem será que deu este nome ao prédio? O que a pessoa estava pensando na hora que escolheu o nome? Sensação semelhante foi provocada ao me deparar com o Edifício Barbarela. A grafia adequada seria Barbarella, mas a sonoridade me levou de imediato ao mundo da ficção científica com Jane Fonda. Quando o filme foi lançado, em 1968, eu não pude assistir, pois era menor. Alguns anos depois assisti com uma turma de amigos, e lembrei dos comentários sobre certa mistura entre ficção científica e erotismo. 

Edifício Trianon

Outro prédio que ao encontrar provocou de imediato sensações agradáveis foi o Edifício Trianon. No meu caso a lembrança do “bauru do Trianon” e da sociabilidade adolescente no entorno do conhecido local na avenida Protásio Alves, muito próximo de onde eu vivi toda infância e juventude, e exatamente na frente de uma das escolas a que pertenci, o colégio Rio Branco. Tomo agora um conjunto de nomes: Edifício Embaixador, Edifício Diplomata, Cond. Edifício Comodoro, Ed. Excelsior, Ed. Astor, Edifício Concord, Ed. Concorde. Quando pronuncio esses nomes, e quando lembro das placas com os nomes na frente dos prédios (veja no repositório indicado ao final do artigo) e da própria fachada dos prédios, algo de tempos antigos me vem à cabeça. É uma sensação difusa de bem-estar e acolhimento, em ambientes refinados, mas com sobriedade, sem exageros ou desperdícios, e sem ostentação. Talvez aquilo que a minha mãe definia como “casas boas”, que tinham todo conforto, eram amplas e espaçosas, tinham aquecimento, mas não faziam alarde disso. Uma mistura do conforto que se imagina haver em navios de cruzeiro (os de antigamente), hotéis (aqueles de antigamente, em nomes como City Hotel) e aviões (como os da Varig). Pouco circulei em ambientes de tal tipo na vida, e certamente não foi na adolescência que circulei. Mas há uma referência de locais assim, com nomes assim, e como padrão de bem-estar e conforto e acolhida.

Uma memória forte me invadiu ao deparar com o Ed. Tatuíra, no Bairro Floresta. Imediatamente fui remetido aos veraneios de criança, em balneário de poucas casas no litoral norte gaúcho. Uma das diversões era caçar tatuíras quando a onda do mar recuava. Até mesmo o estilo do prédio lembrou algo de praia para mim, talvez a disposição de algumas telhas acima da porta, a combinação de cores na fachada, não sei precisar. 

O Ed. Falcon me lembrou na hora o conhecido boneco, que atravessa gerações, pelo menos desde os anos setenta, como brinquedo de meninos. Junto com o boneco, memórias ligadas aos filhos e a crianças em escolas onde lecionei, e que colecionavam o boneco e seus acessórios. Fui invadido por uma sensação de bom humor, ao pronunciar em voz alta o nome Edifício Falcon, com certa entonação típica do desenho animado. Há algo de divertido em morar em um Edifício Falcon, pelo menos para mim, e acho que para muita gente da minha geração.

Sensações difusas de acolhimento, bem-estar, infância, foram provocadas em mim quando frente a prédios como Ed. Harmonia, Ed. Lar, Ed. Senhorinha, Ed. Bem Morar, Ed. Carícia, Ed. Concórdia, Ed. Fada. Não há como ficar indiferente a tais nomes, eles evocam afetos positivos.

Com essa mania de coletar nomes de prédios, a verdade é que passei a dar mais atenção a detalhes da cidade, para além dos nomes de prédios. Colabora para isso o fato de eu estar percorrendo bairros e locais da cidade onde não costumava circular. O encontro com memórias antigas me acomete em outros momentos, por vezes ligado à observação de uma praça, certa arborização, o pátio de uma casa. Deixo no repositório de fotos algumas provocações, que talvez produzam o chamado efeito Proust em leitores e leitoras, em particular em nomes que reconheço terem conexões com a minha geração, tais como Ed. Monza, Ed. Eldorado, Ed. Cantegril, Ed. Orly, Edifício Samuana, Ed. Arpege, Ed. Prelúdio, Ed. Ninfa, Ed. Alvorada, Ed. Aquarela, Edifício Avenida, Edifício Vice-presidente. Ed. Panorama, Condomínio Edifício Mary Poppins, Cond. Ed. Cinderela, Edifício Oriente, Ed. Ribalta, Ed. Marajá, Ed. Magnata, Edifício Sultana, Ed. Monarca, Ed. Bonança, Ed. Diamante Branco, Edifício Esplanada, Edifício Marechal, Ed. Florescente, Ed. OK, Ed. Valoroso.

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Fernando Seffner – Professor da Faculdade de Educação UFRGS

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