Ensaio

Victoria Ocampo, escritora

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Victoria Ocampo, escritora Fotos de Victoria Ocampo em exposição de Cristian Chironi, na BIENALSUR de 2019.

Esta é a quarta parte de um ensaio que teve sua terceira parte publicada aqui.


O primeiro texto de fôlego publicado por Victoria Ocampo foi o ensaio De Francesca a Beatrice, de 1924, uma leitura bastante pessoal de A Divina Comédia. Pessoal não quer dizer que Victoria tenha aportado alguma novidade à interpretação do poema de Dante e sim que ela se apropriou do texto para elaborar questões próprias, amorosas, inclusive. Essa é a versão que conta em sua Autobiografia: “Minha necessidade de comentar A Divina Comédia nascia de uma tentativa de me aproximar da porta de saída de meu drama pessoal, bem como de meu real entusiasmo pelo poeta florentino, meu irmão. Hoje comprovo, sem amargura, que não disse nada sobre esse poema […]. Mas essas tentativas, vãs quanto a seu êxito literário, me enriqueceram internamente”.    

Essa postura de escrever mais para se entender do que para entender o texto ou autor estudado marcará a produção autoral de Victoria Ocampo, coerentemente organizada em dez tomos de Testimonios e seis de Autobiografía. Os Testimonios, Victoria publicou ao longo dos quase noventa anos que viveu; a Autobiografía – mais íntima, com detalhes sobre sua vida afetiva – só sairia depois de sua morte, atendendo ordem expressa da autora. Mas, em se tratando de mulher pública com o poder que sempre concentrou Ocampo, mesmo a intimidade tem interesse social. A síntese, pra variar, é de Beatriz Sarlo, em comentário sobre De Francesca a Beatrice: “Livro que cumpre uma dupla função: tirar a tranquilidade do meio rio-platense de que Victoria Ocampo está se afastando; tranquilizar a própria Victoria sobre suas possibilidades intelectuais […]. Ela tocou o limite do socialmente aceitável, dos preconceitos em que se cruzam gênero sexual e gênero literário (o que uma mulher pode e não pode fazer com a literatura?), da legitimidade de determinados temas e da explicitação das relações entre ordem literária e ordem autobiográfica”.   

Victoria tira a tranquilidade de seu meio porque não era de bom tom que uma mulher de sua classe se expusesse tanto, e isso que ela censurou a parte mais quente de sua autobiografia. Mesmo assim, as relações e desejos de Victoria aparecem nos textos que publicou em vida, independentemente do gênero adotado. A longa nota que ela inclui em ensaio sobre Lawrence da Arábia é uma mostra clara de sua intromissão em tudo que escreve. Transcrevo-a completa apesar da extensão e peço a paciência da leitora, vai valer a pena:

Há um elemento dramático na vida da família Lawrence (esse sobrenome foi adotado, não era o verdadeiro). O pai e a mãe de nosso herói se uniram como marido e mulher e assim viveram pelo resto de sua vida, na mais contínua fidelidade, sem nunca ter podido legalizar esse vínculo. O pai já era casado quando conheceu a que ia ser a mãe de seus cinco filhos. Entrou na casa como preceptora. A jovem era puritana. Mas isso não a impediu de fugir com o homem que se apaixonou por ela e por quem ela também se apaixonou. Isso ocorreu em plena época vitoriana, muito severa com esse tipo de pecado (embora pouco com outros). A vida do casal não deve ter sido fácil. Além disso, o puritanismo daquela que viria a adotar o nome Mrs. Lawrence, longe de diminuir, aumentou com a situação irregular e pecaminosa na qual nasciam seus filhos. Verdadeiramente se sentia condenada a um grande castigo “per secula seculorum”. Educava severamente seus filhos, inculcando-lhes os princípios da mais alta moral protestante. Obviamente, os filhos ignoravam a situação legal (ou melhor, ilegal) em que tinham vindo ao mundo. Mas essa ignorância nunca pode ser eterna, e geralmente os interessados, inocentes, acabam se inteirando das coisas por fora, quer dizer, da forma mais cruel.

Victoria abre essa nota de rodapé logo no início de 338187 T. E. Lawrence de Arabia, ensaio que escreveu sobre esse escritor que também traduziu. É uma crônica que ela resolve deslocar para o paratexto provavelmente para ter a liberdade de fundir os gêneros. Em seguida, a nota assume tom pseudopsicanalítico:  

Vários comentadores da vida de T. E. Lawrence atribuem suas singularidades sexuais (sua castidade, anormal para um homem que não estava atado a nenhuma crença religiosa, apesar de ser – na minha opinião – um espírito profundamente religioso e claramente “bible fed”), seus diversos complexos, à descoberta, aos dez anos, desse fato.

Não é totalmente descartável. Seria, sob certo ponto de vista, bastante verossímil, dado o caráter de nosso herói. Sua inteligência podia sobrevoar essa circunstância. Mas sua sensibilidade (embora talvez ele não tivesse plena consciência disso) deve ter recebido o impacto. Isto é, um trauma.

E depois, Victoria aparece em primeira pessoa para confessar sua proximidade com a mãe e irmãos de T.E. Lawrence. O tom segue sendo o de crônica, um quadro detalhado da situação financeira da família do escritor:

Conheci Mrs. Lawrence em 1946. Esse que foi de fato seu marido morreu muitos anos antes; e três de seus filhos: dois na guerra de 14, outro num acidente de motocicleta (seu Ned). 

Vivia modestamente, eu quase diria pobremente, com seu filho mais velho, Bob. Inspirou-me tanta simpatia, e até afeto, essa mulher valente e espantosamente escrupulosa, que eu nunca passava por Londres sem ir visitá-la, estivesse onde estivesse. Ultimamente, morava (pouco antes de sua morte) numa pensão, em Boars Hill, perto de Oxford. Tinha quebrado uma perna e, como ocorre frequentemente na velhice, a fratura não melhorava e ela caminhava com muita dificuldade. A pensão tinha essas escadas estreitas tão frequentes nas casas inglesas. O quarto dela ficava no primeiro andar. Me explicou que era muito cômodo (very convenient), pois quando precisava de Bob, Bob estava embaixo, batia no chão com sua bengala e ele ouvia. Isso era comodidade para ela. Sua perna quebrada a obrigava a uma quase imobilidade. Na última vez que a visitei era inverno. Na pensão não vi mais que uma lareira funcionando, a do living room (very convenient, sem dúvida, também). Fazia frio no quarto de Mrs. Lawrence. E fria estava sua bochecha, em que dei meu beijo de despedida. Durante o almoço (modesto mas cuidadosamente preparado) houve um incidente de que não me esqueço, pois me pareceu simbólico e característico. Bob tinha me escrito em Londres me convidando para almoçar no domingo, porque nos domingos, dizia, nos servem um excelente almoço. Fui, então. O sol começava a aquecer; era um sol pálido de janeiro (janeiro inglês). No entanto, me encontrei com Mrs. Lawrence de pé, com sua bengala, e Bob na entrada da casa. A casa fica no campo e ela estava olhando o lugar onde tinha pedido para plantar não lembro que planta que eu lhe mandei (ela gostava de plantas).

Para narrar esse incidente simbólico e característico, Victoria mescla o sentimentalismo que vinha empregando a ironia e senso de humor admiráveis:

Pouco depois, entramos para almoçar. Havia quatro ou cinco mesinhas, ocupadas por outros pensionistas, numa sala bem pequena. De sobremesa, serviram algo que gosto tanto que comeria num prato de sopa: sago pudding (uma espécie de mingau feito com uma espécie de tapioca e leite, prato exclusivamente inglês e pouco apreciado por estrangeiros) [nota intrometida, talvez ocampiana, desta que vos escreve: é sagu mesmo, mas sem o vinho]. Comi minha porção, não muito abundante, e não podendo conter minha gula comecei a elogiar para Mrs. Lawrence essa sobremesa que nunca conseguia comer fora da Grã-Bretanha. Mrs. Lawrence me perguntou se queria repetir. Imprudentemente, respondi: “Don’t tempt me” (Não me tente). Ela tomou ao pé da letra. Não teve jeito de me oferecer mais um pouco de sago pudding, apesar das minhas muitas indiretas. Até pediu para trazer o sago cru da cozinha para que eu o visse e pediu que me passassem a receita do doce… mas nada de me induzir à tentação.

Depois da cena divertida de desentendimento linguístico, Victoria volta ao tom sentimental, mas acrescenta agora um novo dado: sua tradução do livro de T.E. Lawrence:

Me falava de seus filhos em geral e de Ned em particular com uma paixão, um orgulho contidos e candentes. “Em tal idade já era capaz de fazer tal proeza, ou de ler tal livro”. Apesar de seus anos, que já eram muitos, tinha uma cabeça clara. Apenas pedia ajuda a Bob às vezes para lembrar exatamente de algo (e talvez para não o deixar o tempo todo fora de nosso diálogo). Minha avidez não a cansava, como poderia cansar-se de contar essas coisas sobre Ned? Nunca se queixava de nada nem de ninguém. Nem criticava uma pessoa sequer. No entanto, a puritana estava presente nela, e em Bob, que herdou esse traço. Bob sabia que eu tinha traduzido The Mint (El troquel) em que abundam os palavrões usados nos quartéis sem que se dê a eles grande importância. Na última vez que fui a Boars Hill (o dia do sago pudding), tinha me advertido, por carta, que não falasse sobre o livro com Mrs. Lawrence. “Nem ela nem eu lemos esse livro”, sublinhava.

Em seguida, Victoria assume tom feminista em formulação textual criativa, uma aliança com Mrs. Lawrence: 

Sei que o pai de T. E. Lawrence era um homem muito distinto. Mas minha opinião pessoal é que sem Mrs. Lawrence de Boars Hill não existiria Lawrence da Arábia. E não me refiro somente ao fato fisiológico e à dança dos cromossomos. Essa mulher tinha uma vitalidade, uma integridade, uma firmeza de tronco de carvalho. Em determinada época, sua vida deve ter sido um inferno interior. O começo terreno do que, segundo seu código religioso, lhe reservava o além. Eu a conheci muito tempo depois dessas tempestades. Vivendo, como já disse, muito pobremente. Sem mais riqueza que a de suas memórias. Diga-se de passagem, nunca conheci desprezo semelhante pelo dinheiro: desprezo que impera entre todos os membros dessa estranha família. Para mim foi uma grande honra conhecê-la de perto. Devo essa honra ao mais jovem dos Lawrence (A. W.), o amicíssimo irmão e herdeiro de T. E., professor de arqueologia em Cambridge, onde o conheci (1946). A semelhança entre esses dois homens é evidente, embora os dois sejam de tônica diferente e reajam de forma diferente. Não acho que um irmão (ou um amigo) tenha entendido tão bem seu irmão como A. W. entendeu T. E.       

Uma crônica disfarçada de nota de rodapé em um ensaio sobre um escritor que ela também traduziu. Talvez essa irreverência em relação à natureza dos gêneros aos quais se dedica seja o traço mais interessante da escrita de Victoria. Suas cartas e relatos de viagem também guardam preciosidades, mas esse é assunto para o próximo capítulo.   


Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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