Ensaio

Victoria Ocampo, tradução em primeira pessoa

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Victoria Ocampo, tradução em primeira pessoa Tradução de Victoria Ocampo para The Mint, 1955.

Esta é a terceira parte de um ensaio que teve seu primeiro capítulo publicado aqui, e o segundo aqui.

O temperamento de vanguarda de Victoria Ocampo não se restringiu a sua obra autoral, sua vida pessoal e sua posição de mulher pública. À área da tradução, para a qual foi determinante como tradutora e editora, ela também incorporou procedimentos inéditos e provocativos em relação às vertentes mais tradicionais. E, como costuma acontecer, gerou contradições que tornam tudo mais interessante.  

Patricia Willson demonstrou a presença da primeira pessoa nas escolhas de Victoria Ocampo como tradutora e como editora de traduções. Essa presença atualiza um tema recorrente nos estudos da tradução, quanto à visibilidade ou invisibilidade do tradutor nos textos que traduz. Durante muito tempo se alimentou a ideia de que o tradutor deve ser invisível, servil e fiel ao texto original, que o texto traduzido não deve causar estranhamento ao leitor da tradução. Esses princípios ainda vigoram, especialmente entre não especialistas em tradução e em parcela considerável do meio editorial, mas nos estudos acadêmicos essas premissas vêm sendo problematizadas. 

Resumindo muito grosseiramente os argumentos de Lawrence Venuti, um dos principais nomes desse debate, a fluência do texto traduzido e a invisibilidade do tradutor são questões mais político-ideológicas do que linguísticas, têm a ver com certa norma do mundo anglófono imposta a todos como universal. O padrão que impõe que os textos traduzidos sejam lidos como se tivessem sido escritos na cultura que os recebe, que apaga diferenças e marcas culturais, alimenta, nos termos de Venuti, “um narcisismo cultural que é pura satisfação pessoal”. E ele segue: “não é apenas o caso de o tradutor realizar um ato interpretativo, mas também de os leitores precisarem aprender a interpretar as traduções como traduções, como textos em si mesmos, a fim de perceberem os efeitos éticos dos textos traduzidos”.             

No campo da tradução, a perspectiva de Venuti é tida como inovadora, valorativa do papel do tradutor, que passa a ser um agente com autoridade sobre o texto que traduz, um intérprete sofisticado das culturas que media, na contramão das noções de servilidade, traição e literalismo tão associadas ao tradutor. Se voltamos a Victoria Ocampo, encontramos mais uma de suas tantas contradições. Patricia Willson demonstrou que convivem nela opiniões conservadoras sobre tradução (os bons textos sobrevivem às más traduções, a poesia é intraduzível) e ações arrojadas quando traduz ou edita traduções. Esse contraste fica evidente no texto de apresentação ao número que a revista Sur dedicou aos Problemas de la traducción, publicado em 1976. Nesse texto, depois de contar algumas anedotas de amigos franceses que odiavam Shakespeare porque os tradutores fracassaram, Victoria assume a posição de autoridade na área e diz: 

Este número de Sur quer esclarecer duas questões:

1) a tradução é importante em si e exige um tradutor que conheça sua profissão a fundo;

2) a remuneração desse tradutor deve estar à altura de seu trabalho, de sua capacidade e há que considerá-lo – já que está dentro de certa hierarquia artística – como um intérprete, que se aproxima do pianista ou do cantor.

Reconhecer a importância do tradutor no campo artístico e cultural e advogar por uma remuneração justa são ações que Victoria pôs em prática tanto em Sur quanto no Fundo Nacional das Artes, e que estavam longe de ser consensuais em seu círculo de atuação. Como tradutora, seus feitos são ainda mais arrojados porque ela inventou um jeito de estar visível no texto traduzido ao mesmo tempo em que adota o literalismo como estratégia de tradução, algo, de novo, nada simples de se conciliar. Traduções literais, por princípio, apagam o tradutor, que costuma aparecer mais em traduções criativas, mas isso também não é tão simples assim.

No caso de Victoria, é o que Patricia Willson chama de tradução em primeira pessoa: “para Ocampo, o tradutor diz eu em suas traduções, mas segundo duas modalidades diferentes. De um lado, mediante a inclusão de prólogos de tradução e notas de rodapé, as duas intervenções paratextuais mais visíveis de um tradutor; por outro, mediante estratégias de tradução que tendem a uma literalidade ostensiva, às vezes estéril, em relação ao texto fonte”. Ou seja, o literalismo de Victoria consiste em deixar parte importante do texto em língua estrangeira para que ela possa incluir notas de tradução.

A tradução de Ocampo para o livro The mint, de T.E. Lawrence, costuma aparecer como exemplo desse procedimento. Algumas notas de Ocampo:

– Medio minuto, Bo*.

* Modo de llamarse unos a otros los aviadores, similar al che. (N. del T.)

– Entonces bajamos el pantalón sobre los puttees* hasta ocultar su juntura. 

* Vendas de tela que se enrollan a la pierna desde el tobillo hasta la rodilla a manera de polaina. En francés, “bande molletière”. (N. del T.)

Na primeira nota, Ocampo opta por deixar a expressão estrangeira no corpo do texto para poder explicá-la com toda liberdade no rodapé, demarcando também que o espanhol que utiliza em sua tradução é o argentino, que não pretende trabalhar com uma língua estândar, por exemplo, que circule entre diferentes falantes de espanhol sem estranhamentos maiores. Por óbvio, essa escolha só é possível porque Sur é orgulhosamente argentina e, mais importante, Victoria é a dona da editora; talvez essa liberdade não lhe fosse garantida como tradutora de uma editora comercial qualquer.

Na segunda nota, em vez de traduzir puttees por polaina ou algo nessa linha, Victoria inclui a explicação em nota e, pasmem, a tradução para o francês, numa exibição de seu trilinguismo. Como se vê, são notas a serviço do texto, claro, mas também a serviço da tradutora, que interrompe constantemente o fluxo da leitura para se fazer visível. Algumas notas são claramente desnecessárias, mas a estratégia rende uma provocação interessante para os estudos da tradução, como renderam as estratégias e reflexões de Borges – As duas maneiras de traduzir, As versões homéricas, Os tradutores das Mil e uma noites são textos já incorporados à bibliografia da área.

Essa primeira pessoa que se manifesta nas notas de tradução será a mesma que escreverá Autobiografias, Testimonios, ensaios pessoais – Victoria Ocampo não separa seu exercício como tradutora de sua obra autoral, o que também é privilégio de poucos. Seja como for, a presença de uma voz autoral beirando o confessional em gêneros nos quais não é esperada força os limites desses gêneros e, em alguns casos, põe em dúvida certos consensos sobre sua estabilidade. Muito já se escreveu sobre a relação irreverente que os escritores argentinos têm com os gêneros: o ensaio-romance de Sarmiento, o anti-romance de Macedonio Fernández, os contos-ensaio de Borges, as miscelâneas de Cortázar, os romances-ensaio de Piglia. Victoria também participa dessa tradição.      


  1.  WILLSON, Patricia. Traducción y primera persona en Victoria Ocampo. In: Página impar: Textos sobre la traducción en Argentina: conceptos, historia, figuras. Buenos Aires: EThos Traductora, 2019.
  2. VENUTI, Lawrence. A invisibilidade do tradutor: uma história da tradução. Tradução de Laureano Pelegrin e outros. São Paulo: Editora da Unesp, 2021, p. 21-25.
  3. Esse e os demais números de Sur estão disponíveis na página da Biblioteca Nacional Argentina: https://catalogo.bn.gov.ar/F/?func=direct&doc_number=001218322&local_base=GENER. A tradução do trecho é minha.
  4. WILLSON, 2019, p. 167, tradução minha.
  5. Citado em WILLSON, Patricia. La Constelación del Sur: traductores y traducciones en la literatura argentina del siglo XX. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2017, p. 105-106.
  6. Um excelente estudo sobre: WAISMAN, Sergio. Borges y la traducción. Traducción de Marcelo Cohen. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2005. 

Texto

Descrição gerada automaticamente
Tradução de Victoria Ocampo para The Mint, 1955

Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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