Entrevista

Paulo Damin: folhetim com graça

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Paulo Damin: folhetim com graça

Entrevista com Paulo Damin, autor de A lenda do corpo e da cabeça, que a Parêntese começa a publicar hoje e vai nos acompanhar por dez sábados.

Parêntese – Conta um pouco da tua formação e trajetória profissional, por favor.

Paulo Damin – Na infância eu lia bastante, gostava de escrever e ouvir histórias. Consegui fazer Letras na UFRGS, depois na UFSC. Trabalhei com várias coisas, mas lidar com linguagem é o que me deu mais sentido. Hoje faço tradução, revisão, dou aulas de português, italiano e literatura. Reservo metade do dia para ler e escrever.

P – Tu tens experiência em tradução, textos para teatro, narrativa longa, crônica. Tu fazes diferença nítida entre cada uma dessas modalidades de produção textual? Tens preferências? Elas se alimentam umas das outras? Dá exemplos, se possível.

PD – Sinto que no romance e no conto é mais fácil aceitar a existência de um narrador, separá-lo do ser humano autor. Talvez porque a crônica esteja originalmente ligada ao jornalismo, ao cotidiano, e texto literário publicado em espaço jornalístico tende a soar mais opinativo. Isso pode fazer com que o autor evite a criação de um narrador que tenha ideias próprias, que advogue a favor do diabo, por exemplo. Um narrador independente do autor, quero dizer. Porque o narrador é uma elaboração mais complexa, que pode exigir mais páginas para que o leitor se acostume com o jogo. 

A Clarice Lispector vê fronteiras mais nítidas entre esses gêneros. Ela parece soar mais como o ser humano Clarice nas crônicas, enquanto cria narradores para suas narrativas mais longas. Em Ser cronista, ela diz que tende a se tornar “pessoal demais” quando escreve para jornal. E ainda: “nos meus livros quero profundamente a comunicação profunda comigo e com o leitor. Aqui no Jornal apenas falo com o leitor e agrada-me que ele fique agradado.” Ou seja, no romance ela consegue se dissolver, sem o objetivo imediato de agradar. Já o Ivan Lessa, que elegeu a crônica como expressão principal, consegue usar recursos de ficção, mesmo que de autoficção. Ele não se preocupa muito em agradar; tem uma postura do tipo “quem entendeu entendeu”. E o Luis Fernando Verissimo resolve o dilema da crônica de modo excelente: cria historinhas cotidianas, com personagens e narrador, sobretudo quando usa a técnica do diálogo. Se a gente lê isso como crônica é porque foi publicado em jornal. 

Eu tento usar narrador e personagens nas crônicas. Não interessa minha vida pessoal, eu quero é ser linguagem. Acho que nas crônicas está a melhor produção literária do Brasil (junto com a canção). Vejo que é um espaço privilegiado para criar ficção, sobretudo pela dúvida que deixa no leitor: “isso é verdade?”. 

Quanto ao teatro, é um gênero que permite a exploração profunda da fala, que é a parte da linguagem mais difícil de transformar em literatura. Escrever dramaturgia é o melhor recurso para dar conta da variação linguística. Além disso, tem o barato de não ser preciso criar um narrador, de se poder resolver tudo nos diálogos entre os personagens. É talvez o gênero em que o autor pode ficar mais distanciado, aquele em que o público faz o pacto de ficção mais rapidamente. 

Tradução é uma escrita que pode ser bastante criativa. Gosto de traduzir Morosoli, por exemplo, tendo como referência as variedades gaúchas. Traduzir, inclusive, é um baita exercício, com a vantagem de não precisarmos ser o autor, nem criar um narrador, os demais personagens e a trama: podemos focar na linguagem. Dá pra aprender técnicas de autores estrangeiros, incorporar na nossa própria produção.

Tento escrever todos os gêneros, mesmo como exercício. Prefiro fazer crônica todo dia e, de vez em quando, romance. Conto quase não escrevo, que acabam sempre virando crônica ou romance, mesmo que como capítulos. É aqui que as modalidades de produção textual mais se alimentam umas das outras. Dramaturgia gosto muito de fazer, mas só me animo mesmo quando tem a possibilidade de montá-la com algum grupo. Aí a escrita passa a ser coletiva, o texto recebe influências dos corpos dos outros, fica um trabalho bem vivo.

P – Teu universo de referência é muito ligado ao mundo da Serra gaúcha, Caxias e região. Esse universo tem material bom para escrever?

PD – Acho que é uma questão de sotaque. Pra mim literatura é forma: é uma maneira de falar alguma coisa, não a coisa em si. Suponho que a Serra ofereça material bom para escrever como qualquer outro universo, em termos de conteúdo. O que vai fazer a diferença é o modo de compor isso, a linguagem. 

Por exemplo, tem o Pozenato, que escreveu O quatrilho, romance sobre os italianos. Mas eu adoraria ler livros xokleng e kaingang situados nessas bandas. Acho que o genial estaria no modo de narrar, para além da perspectiva política. O do Pozenato está no modo naturalista da tradição europeia. O xokleng poderia impressionar pela linguagem, tendo como base a mesma região. 

Eu me meti a fazer livros situados na Serra e no RS respondendo um pouco o Guimarães Rosa, no Estudo de causo, e os romances gauchescos, no Adriano Chupim. Agora foi publicada uma peça minha, A rainha está viva. É uma farsa que se baseia no imaginário da Serra para criar uma situação meio alegórica. Vejo isso de falar de Caxias como algo que eu posso fazer sem pedir licença pra ninguém, assim como alguém de Manaus pode falar de lá com mais propriedade. É a aldeia de onde venho, né. Talvez nessa origem eu encontre alguma originalidade.

Mas falar da Serra não é um projeto estético, muito menos político. A lenda do corpo e da cabeça, por exemplo, se passa em Porto Alegre. O romance que venho escrevendo há mais de dez anos se passa em Amsterdam. Todos têm como princípio alguma provocação formal. Meu universo de referência, mais do que geográfico, é literário.

P – Neste folhetim, sem spoilers, conta o que podem esperar os leitores, por favor.

PD – Senti que a tendência de quem escreve histórias baseadas em Porto Alegre é falar de uma cidade muito soturna, doente, com personagens solitários. Tenho preferido ler e escrever sobre coisas menos cruas. 

Em A lenda do corpo e da cabeça, o cenário é uma Porto Alegre rural de antigamente. Quase cem anos atrás. Os textos da revista Parêntese são um perfeito pano de fundo. Os do Arnoldo Doberstein, por exemplo, dão vontade de ler tomos secretos na biblioteca. Ou aquele, com iluminadora imagem da Ana Koehler, sobre os becos: dica de passeio fora do mapa real atual. A graça de Porto Alegre hoje está na cidade invisível que a gente só consegue ver se alguém nos indica. 

Gostaria que os leitores esperassem graça desse folhetim. Nele se conta, por exemplo, a razão para o arroio se chamar Dilúvio. É um texto para ler no celular, no ônibus, no trem. É pra quem gosta de ler mitos, lendas, histórias que não se limitam à miséria da comunicação humana realista. É uma brincadeira com a linguagem, não um texto sociológico. Cada capítulo é narrado diferentemente. Meu CPF não tem nada a ver com isso. É ficção.

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