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Cefaleia cervicogênica – Parte II: A dama de pitaya

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Cefaleia cervicogênica – Parte II: A dama de pitaya

Até o verão de 2020, Cristianne tinha o sono tão leve que certa noite não conseguiu dormir, ora por causa do barulho dos mosquitos, ora da luzinha vermelha do aparelho repelente na tomada. No dia seguinte, surrupiou da ferragem um modelo com refil de pastilhas.

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Este é o segundo capítulo do folhetim Cefaleia cervicogênica, de Caue Fonseca. Leia neste link a primeira parte. O próximo capítulo será publicado em 9 de outubro de 2021, na Revista Parêntese.


A dama de pitaya

Até o verão de 2020, Cristianne tinha o sono tão leve que certa noite não conseguiu dormir, ora por causa do barulho dos mosquitos, ora da luzinha vermelha do aparelho repelente na tomada. No dia seguinte, surrupiou da ferragem um modelo com refil de pastilhas. Aí não dormiu por causa do cheiro. Como para ela o brilho da tela de um celular no quarto seria o equivalente a um giroflex de ambulância, Valdir se acostumou a velar imóvel e sem distrações o sono da companheira. Curtia a insônia imerso no breu e em suas angústias.

Mas veio o vírus, e a esposa, esgotada e desanimada, passou a bocejar e arrastar as chinelas pelo apartamento minutos depois da janta. Deitava antes de o apresentador do noticiário anunciar o número de corpos empilhados nas últimas 24 horas. O marido encontrava Cristianne diariamente virada de costas para a porta, ressonando pesado do seu lado da cama. Valdir passou a curtir o celular até sob a luz de um abajur, algo inimaginável.

Foi em uma dessas noites rolando o Instagram que a moça do anúncio apareceu outra vez. Entre a foto do gato aninhado no colo da prima e a recordação da estagiária da imobiliária com “saudades né minha filha” de um baile funk. Parou assim que teve o déjà vu.

Dessa vez não era possível discernir se o penteado era um rabo de cavalo ou um coque, pois a modelo olhava fixamente para frente. Do cabelo, só se viam os fios bem esticados, rentes à cabeça. Tinha o olhar compenetrado e a boca fechada, mas uma pequena covinha provocante que só era discernível ao pinçar a foto com o indicador e o polegar e ampliar a imagem. Era o rosto que esperaria de uma mulher ao surpreender o cara com uma lingerie nova no aniversário de casamento.

Tentou lembrar quando seria o seu e de Cristianne. Primeiro, teve de pensar duas vezes para saber em que mês estavam sem a ajuda do calendário futebolístico, completamente bagunçado. Pensou no frio. Era junho. Então recém haviam feito aniversário, ignorado como as outras ocasiões especiais daqueles meses. Olhou para o lado e a esposa vestia um moletom cinza da turma do Pernalonga. Nas costas, a frase “That’s All Folks”. A calça, de que daquele ângulo ele só enxergava um pedacinho lá embaixo das cobertas, era uma série de rostos do Frajola com diferentes expressões: feliz, raivoso, biruta, apaixonado. Voltou para o celular e clicou na foto.

Conduzido ao site da loja de ginástica, descobriu que a moça vestia uma “camiseta feminina manga curta termo-dry” vendida de R$ 209,99 por R$ 134,99. Não era cor de rosa, e sim pitaya. Valdir deu uma risadinha. Vestia também uma minissaia da mesma cor, embora a peça não estivesse anunciada na foto. Na imagem, só se enxergava alguns centímetros de coxa debaixo da barra da saia. Clicou novamente na foto para abrir uma galeria com aquela e outras três fotos da camiseta termo-dry. Na segunda imagem, um sorriso amplo tornava as covinhas menos sexy e mais simpáticas. De namorada safada para vizinha nova do apartamento ao lado precisando de ajuda para trocar a resistência.

As duas últimas imagens, na verdade, eram a mesma: a moça de costas olhando para a esquerda e uma aproximação na nuca, mostrando em close a marca da loja. O cabelo comprido não estava preso nem por um rabo de cavalo nem por um coque, e sim em uma trança, que a moça acomodara sobre o busto para que as potenciais compradoras pudessem visualizar melhor o corte da gola e a marca. Em vez do logotipo, Valdir demorou-se nos cabelinhos maravilhosamente bagunçados sobre o pescoço. Agora precisava urgentemente encontrar uma minissaia para enxergar toda a extensão daquelas pernas.

Ao buscar por “minissaia pitaya”, a decepção. Todas as saias eram anunciadas em quadris com pernas e tênis de corrida, sem nada acima do abdômen. Talvez um daqueles pares fosse dela, mas não a reconhecia. Clicou em algumas que obedeciam ao tom caramelado da pele das fotos anteriores. Vasculhou com atenção os anúncios de saias-shorts, cujas fotos revelavam a curvatura da bunda e as coxas para mostrar um bolso debaixo da saia, rente à lycra do short, para guardar o celular. Não conseguiu identificá-la com segurança. A coxa parecia grossa demais em uma. Em outra, o tom da pele era levemente diferente. Nenhuma das peças era pitaya. Sentiu-se estranho ao tentar montá-la como um quebra-cabeças. Temeu estar desejando a dona das covinhas com pernas de uma estranha, como aquelas atrizes substituídas por uma modelo quando há cenas de nudez.

Deixou a seção de saias e tentou a sorte em outras. Deparou com muitas moças diferentes em trajes de inverno, já em liquidação. Encontrou ela perdida na multidão de poses apenas duas vezes, em ambas coberta dos pés ao pescoço. Roupas adequadas para correr ao ar-livre ou ridiculamente pelos corredores gélidos dos prédios, como virou moda entre os mais exibidos. Havia uma seção de biquinis e maiôs, mas ofertando poucas peças em um corpo pálido e peitudo demais. E sem cabeça.

Quando o relógio do celular marcou meia-noite, as bordas brancas da tela ficaram pretas. Um truque da configuração do aparelho que servia para economizar bateria, mas também para alertar Valdir do adiantado da hora. Decidiu configurar o alarme matinal para quinze para as sete e ir dormir, mas antes deu uma olhada nos outlets. Havia apenas três peças. Dois chapéus e a saída de praia que lhe provocou uma pequena pontada no peito.

Agora ela estava de cabelos soltos, um pouco mais corada nas bochechas do que nas imagens anteriores. Conforme a descrição do produto, o tecido de cor baunilha era uma “mistura de poliamida e elastano de ótimo caimento”, mas imitava um vestido rendado de crochê. Ignorando o aviso de “peça indisponível”, clicou no produto e abriu uma galeria com outras duas imagens. Na primeira, de costas, as alças finas se encontravam em xis logo abaixo das omoplatas. Pinçou a tela e ampliou a imagem a ponto de espiar o contorno de um biquini branco debaixo das rendas. A outra, enfim, mostrava ela da cabeça aos pés. Sorriso tímido, uma das mãos escorando o cabelo atrás da orelha e o rosto levemente abaixado como se estivesse envergonhada de um elogio. As pernas delgadas sobrepostas até encontrar os pés descansados em chinelinhos de dedo.

Valdir olhou para o lado. Enxergou o mesmo moletom cinza imóvel. Debaixo das cobertas, apenas um olhar abilolado do Frajola e o escuro. Desligou o abajur. Se perguntou se Cristianne teria o sono pesado o suficiente para o que ele estava prestes a fazer.


Este é o segundo capítulo do folhetim de Cauê Fonseca, intitulado Cefaleia cervicogênica, de Cauê Fonseca. Leia neste link a primeira parte. O próximo capítulo será publicado em 9 de outubro de 2021, na Revista Parêntese.


Caue Fonseca tem 38 anos. Em 2002, veio de Caxias do Sul a Porto Alegre para aprender jornalismo na UFRGS. É repórter profissional desde 2007, a maior parte do tempo pela Zero Hora e revista Donna. É mestre em comunicação pela Unisinos e tem especialização pela UFRGS em Literatura Brasileira, mundo em que dá os primeiros passos como ficcionista com este folhetim.

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