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Uma cidade fatiada: pesquisadores criticam risco de gentrificação e falta de participação popular no plano para o 4º Distrito

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Uma cidade fatiada: pesquisadores criticam risco de gentrificação e falta de participação popular no plano para o 4º Distrito Foto: Eduardo Lorenz
Parceria entre Matinal e CAU/RS

Com revisão atrasada, gestão de Sebastião Melo criou propostas para o Centro e 4º Distrito que, na prática, dividem Plano Diretor

A cada dez anos, Porto Alegre precisa revisar o seu Plano Diretor, um conjunto de diretrizes para todas as construções da cidade. Neste momento, esse debate está atrasado: as últimas alterações datam de 2010, e a pandemia dificultou as audiências públicas e a participação popular necessárias para que a sociedade fosse ouvida. Enquanto o processo de revisão não deslanchava, a gestão de Sebastião Melo (MDB) enviou à Câmara um projeto que permitia um “plano diretor” específico para o 4º Distrito, que abrange os bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Humaitá e Farrapos, nos mesmos moldes do plano que já havia sido aprovado para o Centro Histórico. Em agosto de 2022, o texto foi aprovado por 23 votos a 10 na Câmara de Vereadores.

Para especialistas, o fatiamento do Plano Diretor é uma espécie de “boiada urbanística” — em referência à frase dita pelo ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião que foi a público em 22 de maio de 2020. Isso porque, entre as medidas, está um incentivo para construção acima do limite urbanístico previsto para aquela área, o que, no limite mais extremo, pressupõe a construção de prédios de até 300 metros de altura. A prefeitura, por sua vez, vê no projeto uma possibilidade de aumentar o potencial de construções de moradias e de comércios em uma área que, além de ser valorizada, tem uma ocupação abaixo do que está previsto no próprio Plano Diretor.

O que prevê o projeto do 4º Distrito?

O projeto aprovado na Câmara Municipal para o 4º Distrito prevê as seguintes modificações:

  • Triplicar a quantidade de endereços ocupados e ativos por hectare. Atualmente, segundo a Prefeitura, são 32,9, e o plano é subir para 100 a 150;
  • Delimitação de zona prioritária (imagem acima) para promover descontos no solo criado (direito de construção) e incentivos de Imposto Sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para empresas que se instalarem nessa área;
  • Obras de melhorias viárias (pavimentação, iluminação, canteiros) nas avenidas Farrapos, Voluntários da Pátria, Cairu, Brasil, São Pedro, Dona Teodora, Leopoldo Brentano e A.J Renner;
  • Obras de macrodrenagem no Arroio Tamandaré
  • Substituição de redes de água no Bairro Floresta
  • Edital para mudança na rede de esgoto entre Farrapos e Cristóvão Colombo
  • Regularização das casas da Vila Santa Terezinha (Vila dos Papeleiros)

O que dizem os especialistas

A falta de participação popular e as divergências entre o projeto para o 4º Distrito e o Plano Diretor, que é um documento que prevê planos para toda a cidade, são as principais críticas das especialistas ouvidas pelo Matinal Jornalismo.

Betânia Alfonsin, doutora em Planejamento Urbano e Regional e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, afirma que o plano de revitalização para o 4º Distrito está focado em populações com maior renda, o que provoca gentrificação — um processo de alteração urbana que encarece determinadas áreas e, por consequência, torna a vida das comunidades ali presentes mais difícil de sustentar, o que aumenta a desigualdade no bairro. “A gente conseguia encontrar um apartamentinho ali na São Carlos ou na Farrapos por R$ 150 mil. Começa a promover uma expulsão que é de mercado, não é uma ordem judicial. A população não consegue mais ficar ali. Aquela padaria vira uma boulangerie, o boteco onde tu comprava uma cerveja de litrão por R$ 12 agora vende uma long neck a R$ 20”, diz Alfonsin. 

Rafael Fleck, presidente da Associação de Amigos do 4º Distrito, pondera que não foram realizadas pesquisas sobre a aceitação popular do projeto, mas que há uma ansiedade da população por ver as melhorias saindo do papel. “Tem muito projeto há muito tempo [para a região], mas efetivamente a prefeitura não conseguia evoluir”, declara. Já Betânia Alfonsin afirma que o projeto “se vende muito bem”. “É como se tu colocasse uma varinha de condão e aquilo fosse se transformar em um território maravilhoso. Temos que pensar qual é o projeto de cidade que se tem. Todo mundo tem que poder desfrutar da cidade como um bem comum”, afirma a pesquisadora.

Camila Maleronka, doutora em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), observa que a crítica à gentrificação não necessariamente é uma defesa da estagnação do local. Para ela, os projetos devem ser construídos de forma coletiva. “Não existe ação individual para valorizar um terreno a uma localidade. Um proprietário de imóveis não pode gerar valorização do seu próprio terreno. Isso é produto da política urbana”, afirma. Ela observa, por exemplo, que projetos urbanos para revitalizar áreas podem trazer investimentos em obras viárias, de drenagem e de melhorias na paisagem, mas isso precisa estar acompanhado de políticas públicas que vejam o território como um todo. “Quais são as populações vulneráveis? Como a gente consegue garantir a permanência delas?”, afirma.

A conselheira do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS) e professora da UFRGS Clarice Oliveira também lembra que os interesses públicos em planos específicos para locais muitas vezes têm relação com a posse de terrenos por parte das construtoras, mas pondera que as incorporadoras podem ser parceiras na construção urbanística, não adversárias. “É um lugar que está perto das coisas, e que a política urbana diz que agora não pode ser usado por tão pouca gente, porque mais gente precisa morar aí. Como que faz pra mais gente morar aí? Substitui casa por prédio. Quem faz isso? Quem transforma a casa em prédio? A atividade, a incorporação imobiliária. Então o incorporador imobiliário acaba sendo um aliado na implementação”, explica Oliveira, observando que é necessário que a participação popular e o controle público ajudem na construção da cidade, para que as grandes incorporações possam contribuir para o desenvolvimento global do ambiente urbano. “A participação é a construção democrática, é o único caminho. Eu não acho que tenha outro”, pondera.

Prefeitura promete investimentos em equipamentos e serviços públicos

Vaneska Henrique, coordenadora de planejamento urbano de Porto Alegre, afirma que desenvolvimento social e assistência estão entre os eixos centrais da construção do projeto do 4º Distrito. Para além das obras de melhorias viárias e de infraestrutura de água e esgoto, ela sustenta que o fortalecimento da economia local ajudará a enfrentar a gentrificação. O projeto prevê áreas de reabilitação urbana para melhorar a economia circular, com estratégias específicas para ruas, avenidas e quadras, mas não especifica quais ações serão realizadas.

“Colocamos junto com a habitação a questão da economia, da cultura local e também o incremento na rede de equipamentos comunitários. Isso acaba tendo um altíssimo impacto. Muitas vezes quando se tem uma região que está aumentando de valor, dificilmente vai se ter um incremento numa escola pública, em um posto de saúde, equipamentos vocacionados para as populações de baixa e média renda”, afirma. O projeto não especifica quantos postos de saúde e escolas serão construídas, embora coloque mais de 100 itens em um guarda-chuva de “desenvolvimento social”, que abrange melhorias nesses aspectos.

Sobre as questões de densidade, Henrique afirma que estudos feitos por técnicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) estabeleceram que a densidade ideal de habitação e comércios para a região do 4º Distrito deveria ser três vezes mais a que é hoje aplicada — e, por isso, é necessário um planejamento para a ocupação da área. Ela também observa que esse não é um projeto de curto prazo e que precisa ser acompanhado de melhorias do território.

“Temos a estrutura do trem, já instalada, o próprio corredor de ônibus da Farrapos, com uma série de linhas que passam ali e muitos passageiros não desembarcam nesses pontos. Há uma diferença grande entre a população que reside e a que trabalha: se pegamos os bairros do acesso da cidade, da Arena até o Centro, temos 50% dos empregos de Porto Alegre localizados nessa porção, que não estão na mesma medida do que a população residente”, afirma.

Ela observa também que, embora os instrumentos de participação popular tenham sido dificultados pela pandemia, as audiências públicas estão sendo substituídas pelas oficinas temáticas, e coloca que as deliberações destas são consideradas pelas equipes técnicas da prefeitura.

“A audiência pública é um formato que não permite conciliar ideias ou discutir ideias. Não é compatível com a construção de uma proposta. Por isso a gente fez as oficinas com diferentes níveis de participação. Algumas estão mais comprometidas, como as ilhas (Arquipélago da cidade), que sentem a falta do plano diretor, que não reconhece nem estabelece grandes propostas. São uma comunidade bem mobilizada e tem participado de forma bastante ativa”, afirma Vaneska, que convida a população geral a participar das discussões para atualizar o plano diretor.

Porto Alegre pioneira

Porto Alegre é uma cidade pioneira em planejamento urbano: em 1959, foi estabelecido o seu primeiro Plano Diretor, que dividiu a capital gaúcha entre áreas de habitação, lazer, trabalho e circulação. Esse documento, colocado como lei em dezembro daquele ano, foi uma espécie de evolução dos planos de melhoramentos que foram estabelecidos décadas antes, por urbanistas como João Moreira Maciel, Edvaldo Pereira Paiva e Luiz Arthur Ubatuba de Farias.

Em 1979, o documento passou a abranger todo o território da cidade. Embora elaborado pelo estado, sem canais de participação e controle social, o plano ajudou a racionalizar o desenvolvimento urbano com base na preservação da paisagem e do ambiente. Flexibilizado nos anos 1980, o plano foi revisto em 1999, sob a lógica do Orçamento Participativo dos governos petistas, com um grande conjunto de opiniões e ideias da população. Porém, a possibilidade de alterações pela Câmara de Vereadores, com base nos “projetos especiais”, provocou mudanças que não estavam previstas no plano inicial. Em 2010, após seis anos de debate e intensa pressão dos setores construtivos, uma nova revisão oficializou os projetos especiais de impacto urbano e as áreas de interesse cultural, que proporcionaram a aceleração das obras para a Copa do Mundo de 2014.

Instrumento básico da política urbana, o Plano Diretor é a base a partir da qual outras políticas vão se desenvolver, como política habitacional, de mobilidade, ambiental, destaca Camila Maleronka. “O problema é que a nossa tradição não gera uma reputação favorável aos planos, porque é comum a gente dizer, ou ouvir, que as cidades foram construídas sem planejamento. Porém, tivemos grandes obras, redes de abastecimento, conjuntos habitacionais, que foram sim fruto de planejamento”, afirma a urbanista.

Maleronka ressalta que os planos diretores são regidos por uma lei federal, chamada de Estatuto da Cidade, estabelecida em 2001, que coloca as diretrizes básicas para a execução da política urbana — diferente de outros países, em que as cidades têm autonomia completa sobre as suas próprias regulações. A pesquisadora observa que, durante o século XX, investiu-se em uma orientação funcionalista, em que as cidades tinham setores comerciais, industriais e residenciais, ideia que está sendo alterada atualmente.

“Em geral, essa regulação mais flexível, na falta de uma palavra melhor, aposta em uma análise técnica discricionária. Na nossa estrutura brasileira, latino-americana, isso facilmente vira arbitrariedade. E isso cria um problema para os dois lados, público e privado. ‘O que eu posso fazer aí?’ A resposta, em muitos lugares, é: ‘Depende’. Precisamos entender quais os recursos disponíveis para abandonar a matriz funcionalista e apostar em outra”, declara Maleronka.

Alfonsin, por sua vez, coloca que os pressupostos do Estatuto da Cidade, que envolvem participação popular, sustentabilidade, planejamento, oferta de equipamentos comunitários e gestão controlada do uso do solo, precisam ser retomados. 

“Uma das coisas que a gente pode fazer é resgatar o tom da Constituição Federal e do estatuto da cidade, que é um tom redistributivo da renda urbana. O que está acontecendo no país é uma perversão disso. Aquela expressão que o Salles usou em uma reunião ministerial, de aproveitar o que está acontecendo na pandemia para ‘passar a boiada’, está acontecendo nas cidades, em forma de ‘boiadas urbanísticas’. Isso não tem nada a ver com as diretrizes da política urbana que o estatuto da cidade previu, de redistribuir os ônus e benefícios da urbanização, não de concentrar mais para quem já foi historicamente muito beneficiado”, afirma Alfonsin.

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