Forma e Função

Empresa de arquitetura da Restinga leva reformas de qualidade a casas de periferia

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Empresa de arquitetura da Restinga leva reformas de qualidade a casas de periferia À frente, de preto, Karol Almeida; atrás, Graça Gonçalves, que teve seu banheiro reformado (Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto)
Parceria entre Matinal e CAU/RS

Com subsídios e condições facilitadas de pagamento, projetos de arquitetura social ajudam famílias a conquistarem necessidades básicas em suas residências

Moradora da Restinga, Karol Almeida passou toda a faculdade de arquitetura e urbanismo sentindo-se deslocada. “Era uma pessoa parda, da periferia, pobre, que não era para estar naquele lugar que não enxergava a Restinga. Pessoas que nunca ouviram falar em arquitetura popular, viviam numa bolha”, afirmou. Ao longo do curso, percebeu que a academia estava alheia à realidade do local onde vivia. Foi depois que se formou na UniRitter que encontrou seu propósito na profissão: levar a experiência adquirida nos bancos universitários para ajudar quem mais precisava. 

Ao ver a hashtag “arquitetura social” no Instagram, percebeu que mais pessoas pelo país faziam o que ela aprendeu a realizar por necessidade: ajudar os moradores da Restinga em pequenas reformas. Decidiu abrir uma empresa com o foco em resolver o que chama de déficit habitacional qualitativo, que diz respeito à condição das casas de famílias mais pobres. Assim nasceu a Kopa Coletiva. 

“O déficit quantitativo se refere àquelas pessoas que não têm onde morar. Já o qualitativo, àqueles cuja moradia não é adequada para viver. É quando a casa não tem uma ventilação boa, por exemplo, tem mofo nas paredes, falta forro, piso – o que provoca doenças inclusive respiratórias. Essas pessoas vão para o SUS e, lá, descobrem que as residências estão adoecendo os moradores”, explica Almeida.

O projeto conta com apoio de instituições como a Nova Vivenda e a Habitat. As casas são indicadas pela prefeitura ou pelos CRAS (Centros Regionais de Assistência Social). As famílias então realizam um cadastro nas ONGs para poder pagar a reforma em até 30 meses e ter acompanhamento da obra desde o início, com projeto, reforma e mão de obra especializada. Esse crédito é obtido com o auxílio de apoiadores, como grandes empresas e fundos de investimento, e pode ou não ser pago pelos moradores, dependendo do modelo de financiamento. A partir da contratação, escritórios como a Kopa são chamados para executá-la.

“Na periferia, nunca teve arquiteto, é o pedreiro quem faz a reforma. Aí precisa ter o dinheiro pronto para a mão de obra, às vezes fica mais caro, a reforma atrasa, o profissional some, as obras ficam mal acabadas, geram um transtorno. Nesse modelo, acompanhamos a obra e oferecemos material de qualidade. Com as reformas financiadas, atendemos um público que não está atendido pela arquitetura tradicional nem está em vulnerabilidade social”, afirma Karol Almeida.

A Kopa está realizando a sua 17ª obra. O primeiro projeto executado foi o banheiro de Graça Gonçalves, moradora da Restinga que habita a casa que era dos seus pais, construída há mais de seis décadas. Conectado à sala, o banheiro ocupava um espaço de um lavabo para abrigar um chuveiro, um vaso sanitário e uma pia, sem forro nem piso. Em dezembro de 2021, a verba destinada pelo instituto Phi — uma ONG que assessora pessoas e empresas para atividades filantrópicas — , Karol executou a reforma que deu, pela primeira vez, a possibilidade da principal unidade sanitária da casa ser inteiramente utilizada. “Agora ficou muito, muito melhor”, comenta Graça.

Banheiro da casa da Graça antes e depois da reforma (Fotos de Karol Almeida e Ramiro Sanchez)

A demanda para execução dos projetos de reforma é crescente, e as iniciativas que levam a arquitetura popular aos moradores precisam de mais apoio e incentivos para prosperarem — e para os quais o poder público precisa olhar com atenção. Almeida observa que há uma enorme diferença entre pensar e executar os projetos de habitação popular, e que as dificuldades de moradia, muitas vezes, se apresentam no momento em que a pessoa entra na casa. 

“Um problema da padronização do Minha Casa Minha Vida, por exemplo, é a questão da materialidade: são muitos os prédios em que não dá para quebrar as paredes porque são estruturais. Quando a família entra e não cabe na casa, isso não é democratização da habitação. Já passei por isso. É necessário dar autonomia para as famílias. Dá para abrir política pública, fazer edital, chamar arquitetos para isso. O caminho está na participação do público alvo interessado nas construções e no dinamismo dos espaços”, pondera. “Para trabalhar com arquitetura social e popular, tem que entender o terreno. Copia e cola nunca dá certo, e gera também segregação”.

Detalhes do banheiro da casa da Graça antes e depois da reforma (Fotos de Karol Almeida e Ramiro Sanchez)

Reforma urbana para garantir o direito de moradia a todos

A melhoria nas condições de moradia é indissociável da reforma urbana, de acordo com a arquiteta e urbanista Karla Moroso, que integra o escritório (AH) Arquitetura Humana e a ONG CDES (Centro de Direitos Econômicos e Sociais). Criada em 2001, a organização promove o respeito e a proteção dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais e trabalha principalmente na questão da oferta de moradia digna aos cidadãos.

“A arquitetura, no campo do urbanismo e planejamento urbano, tem a ver com acesso à terra. O controle do adensamento urbano, por exemplo, tem a ver com controlar o acesso à água, aos mananciais, e o que se vê hoje é que todas as necessidades básicas são acessadas via mercado. Precisamos entender a estrutura fundiária e os padrões de ocupação urbana de uma maneira mais distributiva e mais justa, e buscar o equacionamento das desigualdades socioespaciais”, declara a arquiteta.

Ela observa que existem instrumentos jurídicos para diminuir o déficit habitacional, mas que eles não são utilizados pelos gestores públicos muitas vezes devido à consonância entre a ideologia política dos mandatários e os interesses do mercado. “É bem o contrário: os recursos são utilizados para que o mercado imobiliário possa construir prédios em que o céu é o limite, por exemplo, e o poder público abre mão das contrapartidas. Liberam índices construtivos para os empreendedores e essa liberação não vem casada com o recurso direcionado para produzir moradia popular ou investir em infraestrutura nos assentamentos informais”, declara.

O escritório Arquitetura Humana trabalha, desde 2014, com cooperativas habitacionais, assentamentos e movimentos de luta por moradia para levar o direito à habitação digna na prática para as pessoas em situação de vulnerabilidade. Um exemplo dado por ela está no Assentamento 20 de Novembro, em que foram aprovados recursos para melhorias com o apoio do programa Minha Casa Minha Vida – Entidades, embora tenham sido objeto de um impasse jurídico subsequente. O projeto em curso, ainda sob execução, prevê melhorias estruturais, uma rua interna e um pátio cultural. Além do 20 de Novembro, o escritório também deve executar as reformas no Assentamento Primavera, localizado no Centro Histórico de Porto Alegre.

Embora iniciativas pontuais levem saneamento e outras necessidades básicas às moradias, Moroso observa que há um longo caminho a ser percorrido para que essas melhorias estejam no radar das políticas públicas nacionais. Atualmente, afirma Moroso, a maior parte das iniciativas que levam a arquitetura para a população são voluntárias, e carecem de uma estrutura permanente que possa aumentar a escala das propostas para chegar às milhões de residências com problemas de habitação qualificada.

“No Brasil, existe um sistema nacional de habitação, que tem três braços: planejamento, recursos e gestão democrática. O Ministério das Cidades, fundido ao da Integração Nacional em janeiro de 2019 para criar a pasta do Desenvolvimento Regional, observou quantos recursos eram necessários, foram criados os fundos de habitação e os mecanismos de participação. Porém, ainda não conseguimos vencer o que é necessário para colocar em prática”, pondera Moroso, que vê na nova gestão uma possibilidade de melhoria, ainda com reservas.

“Nós paramos com a tragédia (em referência ao governo Bolsonaro). Estávamos em uma perspectiva de acabar com a função social da propriedade, que é central para as políticas urbanas e habitacionais. Agora, o trabalho é pensar no estrago e na reversão. Vamos ter um governo truncado, porque isso precisa de uma construção com o legislativo, mas toda essa questão da assistência técnica e do direito à cidade, que não era tão central nos governos Lula e Dilma, está vindo mais forte agora. Os movimentos de moradia, por exemplo, estão bem representados na transição”, afirma. “Vamos conseguir frear o problema e dar uns passinhos para a frente, mas com muita dificuldade ainda”. 

Arquitetos remunerados constroem banheiros em casas populares

Mais de 1,6 milhão de residências no Brasil não têm banheiro, de acordo com dados do Portal Saneamento Brasil, que estima mais de 5 milhões de pessoas sem acesso a necessidades básicas dentro das suas próprias residências. Isso significa que, mesmo que as redes de saneamento cheguem a essas casas, as residências não estão preparadas para o destino correto desses resíduos. São 17,3 milhões de domicílios brasileiros sem acesso à rede coletora de esgoto ou fossa séptica, segundo o Panorama do Saneamento Básico no Brasil do Ministério de Desenvolvimento Regional, publicado em agosto de 2022, cerca de 32% do total. As metas dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU preveem acesso a água e redes de esgoto para toda a população brasileira até 2030, mas essa meta ainda está distante do cumprimento, e a arquitetura faz parte desse desafio.

Na Trienal de Arquitetura e Urbanismo, realizada em Porto Alegre, o CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) do Rio Grande do Sul apresentou o projeto Nenhuma Casa Sem Banheiro, que conta com as parcerias do governo do Estado e da prefeitura da capital gaúcha. O foco do projeto é engajar a comunidade de arquitetos por meio de projetos remunerados para construir unidades sanitárias em residências que não as têm. O presidente do CAU-RS, Tiago Holzmann da Silva, saúda a repercussão da iniciativa.

“Estamos há um ano e meio construindo esse projeto e agora, nos últimos meses, começamos a construir dezenas de banheiros, principalmente em Canoas, onde temos 359 famílias para atender. A escolha dessas famílias foi por meio da assistência social do município, ou seja, as que mais precisam estão sendo atendidas antes. Foi uma conjunção institucional muito bacana. São 40 arquitetos, de forma remunerada, atendendo essas famílias de forma individual”, afirma Holzmann, que observa a colaboração dos agentes públicos para essa construção.

O projeto do CAU começou a atingir escala nacional. O governo do Distrito Federal decidiu aderir à ideia e aportar R$ 500 mil para a construção de unidades sanitárias em residências de pessoas vulneráveis, principalmente no bairro Cidade Estrutural, anteriormente conhecido como “lixão de Brasília”. “Ajudar essa população, além de urgente, é necessário e viável”, afirma Holzmann.

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