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Escaldante no verão, gelado no inverno: como ter conforto térmico em casa no RS

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Escaldante no verão, gelado no inverno: como ter conforto térmico em casa no RS Edifício Niemeyer, em Belo Horizonte | Foto: César Vieira_Fotografia
Parceria entre Matinal e CAU/RS

Mudança climática traz desafios de preservar a temperatura ideal para o convívio em ambientes internos

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a temperatura média ideal para a parte interna de uma residência fica entre 23ºC e 26ºC. No clima subtropical, alcançar essa temperatura média sem equipamentos de condicionamento de ar se torna mais complicado à medida que avança a mudança climática. Em 2022, Porto Alegre ultrapassou a máxima de  40ºC pela terceira vez na história — todas elas foram neste século. Enquanto isso, à beira da primavera, em agosto, as mínimas chegaram a 4ºC.

Além de um desafio arquitetônico, o conforto térmico dentro das residências e locais de trabalho traz um problema a ser resolvido no âmbito das políticas públicas. Isso porque o gasto de energia necessário para manter as residências com temperatura razoável tende a aumentar, e, por consequência, o custo da eletricidade. 

Em dez anos, o preço da energia elétrica no Brasil subiu 82%. O megawatt por hora passou de R$ 340,90 em 2011 para R$ 622,20 em 2021, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Corrigido pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o valor ficaria em R$ 616,02, segundo o Banco Central. Esses valores precisam ser ponderados pelo fato de que a energia é um dos fatores que mais pesa na inflação: em 2021, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV), quase 50% da inflação acumulada medida pelo IPCA partiu dos reajustes da energia e dos combustíveis.

No Brasil, existem normas que regulam o conforto térmico nas residências com base não apenas na quantidade de energia a ser gasta, mas também nos materiais usados para as construções, as orientações solares e os modelos de ventilação. A norma 15220 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) mostra, em 66 páginas, o que uma edificação precisa ter para que a temperatura ideal seja atingida. A ela se soma a norma 15575, de 2013, que serve para medir o desempenho de segurança e de comportamento energético das edificações.

Segundo Rodrigo Spinelli, conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) e professor na área de conforto ambiental da Universidade do Vale do Taquari (Univates), o cumprimento das normas já existentes é um caminho que precisa ser seguido para que os gaúchos não passem muito calor no verão nem muito frio no inverno dentro de ambientes fechados.

“O que nós precisamos é uma conscientização e dessa valorização do projeto arquitetônico, seguindo regras já existentes. As normas definem o zoneamento bioclimático brasileiro, as características construtivas específicas para que a gente possa ter um comportamento térmico e energético adequado da edificação”, afirma Spinelli. Entre essas características, estão avaliações de materiais construtivos de acordo com a ventilação necessária, revestimentos para isolamento térmico e até mesmo a resistência ao calor de diversos materiais, como madeira, cimento e palha.

A professora de arquitetura e urbanismo da UniRitter Érica Dall’Asta ressalta que o trabalho material serve para potencializar os recursos naturais que realmente permitem o conforto térmico: sol, vento e luz. “O projeto precisa pensar em orientação solar, aberturas, tipos e funcionamento das esquadrias, dos vidros, aproveitamento da ventilação. Preciso conhecer a direção dos ventos predominantes na cidade para o ano todo, porque no inverno, precisamos de muita circulação de ar para levar embora vírus, vapores, odores. No verão, além de higienização, precisamos que a ventilação do ar reduza o calor acumulado nas paredes, nas coberturas, na área interna e na mobília”, explica a arquiteta, também especializada em conforto térmico de ambientes.

Uma solução para cada estação

Embora as normas técnicas detalhem parâmetros de temperatura a serem cumpridos, não determinam como atingi-los. Érica explica que há diferentes formas para se chegar ao conforto térmico ideal dentro de um ambiente, e as soluções podem passar desde prédios capazes de sombrear a si em determinados momentos do dia até a escolha das janelas. “Antigamente era muito comum aquela janela com a basculante em cima, boa para o inverno. Ela permitia que o ar fosse renovado, mas passando acima das nossas cabeças”, conta a professora. Neste caso, um pé direito alto é essencial — de quebra ele ainda ameniza o efeito de verões intensos.

Com as normas atuais, a tendência é que surjam construções com desempenho térmico melhor. Desde o material usado nas construções das paredes, até o tipo de vidro colocado vão mudando com o passar dos anos. Soma-se a isso inovações na área de geração de energia para viabilizar a climatização por equipamentos cada vez mais modernos. Uma das tendências que Érica observa é a instalação de placas solares, seja na cobertura dos apartamentos, seja nas fachadas dos prédios. “De uma maneira geral, acho que quanto mais se puder aproveitar os recursos naturais, melhor. Consumimos menos energia elétrica e consumindo menos energia elétrica ela fica acessível”, destaca ela. 

O desenho da cidade também tem papel importante para reduzir o calor. Érica destaca a arborização, solução mais benéfica do que prejudicial. Além de auxiliarem no conforto térmico geral, as árvores trazem sombreamento, reduzem o ruído urbano e ainda ajudam na manutenção da flora e fauna local. “Muitos criticam as árvores porque elas danificam o passeio, porque tem podar, mas elas são muito importantes na ambiência urbana. Fora que caminhar em uma via arborizada é melhor do que caminhar em uma via árida que só tem concreto, veículo e poste”, diz a arquiteta. 

No Brasil, oito zonas bioclimáticas

Spinelli afirma que, apesar de as normas vigentes no país serem detalhadas, ainda há muito a ser feito. O Brasil é dividido entre oito zonas bioclimáticas, por exemplo, que colocam o Planalto Médio do Rio Grande do Sul e a Região Metropolitana de Porto Alegre no mesmo âmbito, assim como as margens do Rio Amazonas e o litoral da Bahia. Para comparação, a Espanha tem 24 zonas bioclimáticas.

Zonas bioclimáticas do Brasil. Fonte: Bioclimatismo.com.br

As normas estão sendo revisadas, e podem levar o Brasil a ter mais de 80 zonas bioclimáticas. Isso impactará no custo da construção civil mas, para Spinelli, esse peso pode ser mitigado pela diminuição do custo da energia.

“A partir de simulações matemáticas que fizemos, mudando alguns materiais, trabalhando coberturas de formas diferenciadas, conseguimos reduzir o consumo de energia de uma edificação entre 40% a 50%. Isso significa usar 40% ou 50% menos o ar condicionado. Muitas vezes usamos o ar condicionado em um dia em que está 33ºC na rua, e poderia estar, dentro de casa, com uma temperatura menor, mas não acontece porque a transferência de calor do exterior para o interior é exagerada e inadequada. Se trabalhássemos de forma diferente com as materialidades, talvez não utilizássemos tanto o ar condicionado”, relata Spinelli.

Erica observa que é necessário “desmistificar” a lógica de que a normatização limita o processo criativo dos arquitetos e engenheiros. “É bem pelo contrário: às vezes, acho que é mais difícil criar com critérios, a compreensão do clima nas diferentes escalas ajuda nisso. Mas precisa ser abordada de diferentes formas. Precisamos entender as diferenças entre regiões, topografias, mesmo com a proximidade entre os locais. Daqui a pouco, estou em Porto Alegre, mas trabalho em um quarteirão cheio de edifícios altos e o entendimento do clima acaba sendo diferente. Posso ter edifícios que sombreiam o lote, desviam os ventos. A regra geral é: compreender o clima do local”, afirma a professora.’

As regras de ouro

Segundo Erica Dall’Asta, ao projetar ou adquirir um novo imóvel, é preciso ter em mente as seguintes regras:

– Orientação solar: as janelas precisam estar orientadas de forma adequada para permitir sol no inverno e sombra no verão.

– Tamanho adequado das aberturas: as janelas precisam estar orientadas de forma que permitam a ventilação cruzada e que possam arejar os ambientes.

– Soluções de sombreamento e escurecimento: além das aberturas adequadas, é preciso que as venezianas e persianas ajudem no isolamento térmico e no escurecimento do ambiente

O exemplo dos povos originários

Não havia ar condicionado, acesso a roupas térmicas ou geladeira na época em que os kaingang eram a população mais proeminente no Rio Grande do Sul. Ainda assim, durante cerca de nove séculos, eles viviam em harmonia com a natureza e adaptaram suas residências a um formato diferente. Vivendo principalmente nos platôs, os kaingang construíam casas subterrâneas em que o local do fogo ficava a cerca de três andares abaixo do solo, enquanto a palha permitia a ventilação.

Essas residências foram objeto de trabalho do antropólogo Sandoval Amparo na Universidade de Brasília (UnB) e estão no livro “Sobre a organização espacial dos kaingang, uma sociedade indígena Jê meridional”, publicado em 2010. Amparo fez o trabalho quando trabalhava como geógrafo da Fundação Nacional do Índio (Funai) e teve contato com escritos e pesquisas de antropólogos do Rio Grande do Sul, que investigaram como funcionavam as residências dos povos originários.

Usando formas cônicas e circulares, com o local do fogo como central, as residências conseguiam aproveitar a temperatura do solo — que fica em torno de 17ºC, segundo Rodrigo Spinelli — para promover conforto térmico para as famílias dos kaingang. “No processo migratório, os kaingang migram do Brasil central, às margens do Rio Tietê (em São Paulo), para o Sul. Eles desenvolvem a casa subterrânea como uma adaptação cultural ao novo clima em que eles passaram a habitar. Saem de uma região seca, com duas estações bem definidas, vão para uma região subtropical com temperatura que fica entre 17ºC a 18ºC. São cerca de 10ºC de diferença de onde eles viviam. A arquitetura subterrânea surge como um desenvolvimento cultural e tecnológico”, diz Amparo.

Reprodução de figura de Fernando La Salvia, presente no livro de Sandoval Amparo, de casa subterrânea dos kaingang.

Na época, os kaingang habitavam principalmente áreas distantes de nascentes de água, o que, na visão do autor, era o “principal problema” dos assentamentos. As habitações ficavam em desníveis de 300 a 400 metros. O local do fogo era sempre central nas casas dos kaingang, de modo que o calor pudesse ser disseminado em todos os níveis. Ao mesmo tempo, as aberturas nos telhados de palha permitiam a ventilação cruzada e a circulação de ar. “Era uma arquitetura racional, que usa os materiais disponíveis no próprio território”, destaca.

Há sítios arqueológicos com essa formatação desde o século IX. Porém, no século XVIII, com o início das políticas indigenistas e do uso produtivo da terra, essas habitações são deixadas de lado em prol de formatações distintas, mais semelhantes às habitações indígenas que aparecem no norte do Brasil. Amparo observa que, neste momento, as populações kaingang começam a diminuir significativamente, e as infecções pulmonares estão entre as principais causas de mortalidade. É possível, segundo o pesquisador, associar isso à mudança nos padrões habitacionais do povo kaingang.

“A política pública, no tempo da colonização, era destinar a terra aos colonos e ajudá-los. Mas essas terras já estavam habitadas pelos povos originários. Gerou muitos conflitos, várias colônias inclusive deram errado e tiveram que ser reassentadas. Vai aparecer uma política indigenista laica, no final do século XIX, início do século XX, com Rondon. Surge uma arquitetura indigenista, que não é indígena: entra a telha de Brasilit, a madeira passa a ser eucalipto, pinhão. O uso produtivo da terra é um conceito que faz parte da história do Brasil, o sesmarialismo. O que isso quer dizer? Pressão em cima dos indígenas, sobre as áreas demarcadas”, relata Amparo.

Com essa lógica, influenciados pelos técnicos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, posteriormente, da Funai, as terras indígenas passam a ser voltadas para a produção agrícola. Consequentemente, as florestas passam a ser úteis para a produção das casas. Muda-se a lógica para o sentido da produtividade. Até hoje isso tem impacto: os projetos atuais de assentamentos ignoram, por exemplo, o local do fogo, central nas áreas kaingang. São casas padronizadas, em que as fogueiras ficam do lado de fora da habitação.

“É muito importante um projeto de arquitetura voltado para a ancestralidade. Isso passa praticamente despercebido. O fogo é o que mantém a família junta, e isso sai de um local de centralidade para uma parte mais periférica”, pondera Amparo.

Rodrigo Spinelli considera que, para além das novas tecnologias e materialidades, o aprendizado com os povos originários pode permitir com que os projetos arquitetônicos usem a natureza a seu favor.

“A arquitetura sustentável ela se utiliza de meios ecológicos, desses meios eletrônicos sem problema algum né? E mesmo assim a gente consegue melhorar consideravelmente o consumo energético de uma edificação. Mas podemos, também, trabalhar com a questão da arquitetura ecológica, vernacular: utilizando apenas os meios naturais, como ventilação cruzada, insolação natural. Esses meios existem para que possamos utilizar como queremos”, afirma.

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