Forma e Função

O Parque da Orla e a cultura afro-gaúcha apagada nos espaços de celebração

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O Parque da Orla e a cultura afro-gaúcha apagada nos espaços de celebração Projeto da GAM3 PARKS prevê uma pequena área sobre a contribuição do povo negro para a cultura gaúcha (Reprodução)

Este ensaio é um breve esboço sobre o que é ser negro do Sul do Brasil e como é possível existir neste lugar que tem como tradições a ausência e o silenciamento. Também lidas como políticas de desmemórias, essas tradições podem ser observadas em todos os âmbitos da vida urbana, especialmente no que tange à cidade, à cultura e à arquitetura que, ao interagir em conjunto, influenciam na construção imagética da população negra no Rio Grande do Sul.

O projeto de revitalização do Parque Harmonia faz parte do conjunto de empreendimentos que visam a reconstrução da Orla de Porto Alegre. E, ao contrário do que as notícias sobre o empreendimento fazem pensar, o projeto prevê uma pequena área para a contribuição do povo negro para a cultura gaúcha. Localizado na zona “Origens do Povo”, o espaço, conforme o texto explicativo, tem como objetivo “refletir em suas atrações e espaços, traços da contribuição indígena, espanhola, portuguesa e negra na formação do povo gaúcho.” Nesta zona, foram previstas a praça infantil Negrinho do Pastoreio e a praça Colônia Africana, que visam homenagear a lenda cristã e o antigo território negro, que atualmente corresponde aos bairros Rio Branco e Mont’Serrat. 

Ao fazer uma leitura crítica do projeto, é gritante como a representação das contribuições do negro ao Estado é minimizada e restringida às experiências da escravidão e da periferização, como se não houvesse nada mais a ser dito sobre a população negra. Como se não houvesse ancestralidade antes dos mais de cinco séculos de escravidão no Brasil e como se, após 1888, a cultura afro-gaúcha não fosse relevante e digna o suficiente para ocupar mais do que duas praças em um lugar que visa a celebração dos povos habitantes do Estado.

Durante o processo de formação de Porto Alegre como cidade, a presença do negro é inegável: representava, ao final do século XIX, 30% da população da Capital. Como testemunhas desta presença, tivemos a formação de diversos Territórios Negros que, a partir da definição da autora Daniele Vieira (2017), eram espaços físicos e simbólicos, configurando-se a partir de sua função e/ou prática cultural – como batuque, carnaval e religiosidade, exercidas por mulheres e homens negros. Ao longo das décadas, esses territórios sistematicamente sofreram processos de periferização, que consistiram no deslocamento e/ou extinção destas localidades à medida em que a cidade foi passando por melhoramentos urbanos, deixando clara a mensagem de que negros não são bem-vindos na cidade formal.

Ao olhar para o papel do negro na cultura, especialmente na arquitetura e nos espaços de arte, é possível observar qual é o tratamento do negro na construção imagética popular e a partir de qual ângulo essas imagens são veiculadas.  Para entender estas construções, é necessário analisar a relação entre negritude, cultura e espaço. Um bom ponto de partida para estas análises é o museu, lugar que se coloca como de preservação e de difusão do que a sociedade considera como sendo importante, e portanto age como dispositivo da narrativa que coloca negros em lugar de figuração e desumanização.

Atualmente, nos museus do Estado, o papel do negro é fortemente marcado pela ausência e pelo silenciamento. Segundo os dados divulgados em 2022 pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), das 5.598 obras que compõem o acervo do museu, apenas 2,43% têm autoria negra. O mesmo pode ser dito sobre seus artistas: apenas 25 dos 1.079 são negros. Como consequência desta falta de representatividade e autoridade sobre sua própria imagem, a imagem do negro costuma aparecer veiculada a três temas específicos: trabalho, sexualidade e religiosidade. Esses três temas são fortemente marcados pelo voyerismo e pela fetichização, marcas da desumanização atribuída ao corpo negro pela sociedade branca.  

Em contraposição a este panorama, existem projetos para mudar este cenário. Em 2017, foi inaugurado o projeto Museu do Percurso do Negro, que tem como missão evocar a presença e a memória afro-brasileira e africana a partir de obras de arte e da arquitetura localizados no centro histórico de Porto Alegre. E mais recentemente, em 2022, foi lançada a exposição Presença Negra no Margs, que encara a escolha de ausência no museu e traz 200 obras e 100 artistas negros. A exposição tem como um dos objetivos centrais a articulação de um novo modo de ver a arte afro-brasileira, não mais como tema e estilo, mas como uma parcela da arte nacional.

No campo da arquitetura, poucos projetos que tenham a população negra como foco foram concretizados até o momento. O Museu Afro-Brasil, localizado em São Paulo, e o Museu Afro-Brasileiro, localizado na Bahia, são alguns dos poucos espaços existentes. Em contrapartida, dentro da academia, vem acontecendo um movimento de projetos e pesquisas que têm como foco principal a construção de imagens positivas e complexas da população negra no Estado e no País. Alguns exemplos destes esforços estão em projetos como museus afro-brasileiros, centros de referência da cultura negra e revitalizações de quilombos urbanos. 

Sabemos que a população negra sempre esteve presente no espaço urbano e na vida cultural da cidade e, na arquitetura, vem se formando uma geração de arquitetos conscientes da importância do papel do negro para cidade. Deve ser feito o questionamento dos motivos pelos quais os espaços que estão sendo projetados para Porto Alegre ainda colocam esta parcela da população em uma posição que pouco acrescenta para a formação de sua imagem.

Qual pode ser a explicação para que um projeto que tem como proposta norteadora o pertencimento e a compreensão da cultura gaúcha construa uma narrativa tão limitante para a contribuição do negro no Rio Grande do Sul? Como podemos olhar com naturalidade um espaço que prioriza brinquedos temáticos e vilas europeias, mas não valoriza as contribuições do afro-gaúcho?  Por que os únicos dois espaços propostos têm nomes e temas que remetem a histórias de violência e exclusão urbana?  Por que ainda é tão aceito e encorajado que a cultura gaúcha seja pautada em cima de uma narrativa colonizadora que transforma o negro em um nada?  

É preciso que os espaços construídos – especialmente aqueles que se propõem a uma narrativa de pertencimento – deem à população negra a chance de se reconhecer além do que nos foi ofertado. É importante que se pense no tipo de cidade que se quer e como a arquitetura interage com a população. Um projeto como o do Parque da Orla impacta diretamente a percepção dos habitantes sobre a cidade e sobre si mesmos. Levando em consideração os efeitos de projetos como esse, deve-se estimular os questionamentos sobre o tipo de arquitetura que deve ser feita e como é possível construir espaços que não compactuem com a narrativa de que alguns povos importam mais do que outros.

Estes espaços devem visar o pertencimento. Para isso, é necessário que as lentes de desumanização sejam retiradas do discurso urbano. A construção destes locais deve ser a partir dos olhares e das experiências negras conscientes, que agem como comunidade e não dependem da sociedade branca para a articulação da preservação e da difusão das narrativas afro-gaúchas e dos países africanos de nossos antepassados. É a partir desta argumentação, na qual deixamos de ser temas pautados pela branquitude e nos tornamos autores de nossas próprias vivências, que somos capazes de encontrar saídas para os apagamentos e estereótipos que permeiam a experiência de ser uma pessoa racializada como negra no Sul. 



Alexandra Assunção Silva de Oliveira tem 27 anos e é formada em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na academia envolveu-se com pesquisa na área de patrimônio histórico e cultura, e seu trabalho de conclusão de curso, intitulado Reconhecendo presenças invisíveis: museu das mãos negras, visou atribuir ao negro um lugar digno na arte e cultura gaúcha.

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