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Há 35 anos, o RS recebia a “carne de Chernobyl”

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Há 35 anos, o RS recebia a “carne de Chernobyl” Capa de 22 de janeiro de 1988 do jornal Zero Hora (Fonte: Centro de Documentação e Informação/Grupo RBS)

Imprensa gaúcha da época chegou a defender o consumo da carne que desembarcou por aqui nos anos 80. Veja ainda a história de um trabalhador vítima da contaminação e que foi indenizado nos anos 2000 

Era fevereiro de 1986 quando o Plano Cruzado foi instituído no Brasil. Sua função era conter a inflação que crescia descontroladamente, utilizando táticas como o congelamento de preços e salários. Mas o que se viu, devido à euforia dos consumidores e aos prejuízos da indústria e comércio, que se negavam a repor os produtos pelo preço tabelado, associado à estiagem e entressafra, foi uma crise de desabastecimento no mercado interno. Pensando em garantir o abastecimento, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), ligada ao governo, lançou editais para importar produtos de outros países – como carne e leite em pó. O que não se esperava, no entanto, era que o acidente de Chernobyl, que viria a ocorrer próximo ao início das negociações, teria um impacto tão grande na alimentação dos brasileiros.

Mesmo após cancelar a licitação devido a temores de radioatividade, o governo decidiu retomar as negociações em junho, buscando garantir que os alimentos importados eram seguros para o consumo por meio de atestados para a importação e da avaliação dos níveis de radioatividade pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) na chegada. Mas uma denúncia do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 23 de agosto de 1986, mostrou que o lote de leite em pó recebido no Brasil não era. 

Um mês após a importação do leite, o país recebeu 100 mil toneladas de carnes bovinas e suínas dos Estados Unidos e da Europa. A carne foi estocada nos frigoríficos da Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem) – que mais tarde, com a fusão da Cibrazem, da Cobal e da Companhia de Financiamento da Produção, viria a se tornar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) -, em Canoas (RS), distante 18 quilômetros da Capital.

Assim, quando as primeiras carnes desembarcaram no país, em setembro de 1986, os açougues comemoraram o seu recebimento, e a maior preocupação era se a carne importada daria um bom churrasco. A própria imprensa gaúcha publicou diversas matérias defendendo o consumo da carne, que era vendida rapidamente, levando o governo a prometer mais lotes.

Reportagem de Zero Hora de 17 de setembro de 1986 diz que a carne que chegaria ao Estado era “”da mais alta qualidade” (Centro de Documentação e Informação/Grupo RBS)

Foi em 1987, no entanto, que as polêmicas em torno da “carne de Chernobyl” começaram, envolvendo um lote de 7 mil toneladas que se encontrava no Rio Grande do Sul e havia chegado entre dezembro de 1986 e fevereiro de 1987 – destas, em torno de 4 mil toneladas estariam armazenadas na Cibrazem, enquanto o restante estaria com a iniciativa privada. O abate teria ocorrido entre 1982 e 1984, antes do acidente na usina nuclear soviética.

Foi noticiado, na época, que a carne estaria contaminada, mas os laudos iniciais que atestam a radiação não foram localizados pela reportagem, apenas os posteriores, realizados para investigação. Uma matéria anterior à polêmica de 1987, publicada em 21 de outubro de 1986 pelo Estado de S. Paulo, traz dados e pareceres dos técnicos responsáveis pelas análises, indicando que a carne estaria contaminada em níveis baixos (como viria a ser provado posteriormente). Os técnicos, no entanto, ressaltam que não seria possível afirmar a inexistência de riscos de câncer quando considerada a capacidade cumulativa dos elementos radioativos. Na mesma matéria, chama a atenção o fato de um deles afirmar que o Césio não seria um problema no leite contaminado, mas sim a eventual presença de Estrôncio-90, o qual ele garante que não havia. Em seguida, comete um erro ao justificar tal ausência visto que “não houve explosão no acidente de Chernobyl” – o que aconteceu foi justamente uma  explosão do reator que liberou substâncias radioativas como Césio e Estrôncio. Na próxima frase, mais uma contradição: “No leite mais contaminado por estrôncio importado…”, indicando que de fato houve a contaminação pelo elemento.

Recorte do jornal O Estado de S. Paulo, de 21 de outubro de 1986

Em abril de 1987, com base em uma ação protocolada por uma entidade ambientalista gaúcha que solicitava a suspensão da venda da carne devido à polêmica, a Justiça proibiu a comercialização do produto. No entanto, em janeiro de 1988, baseando-se em laudos que apontavam baixa radioatividade e não indicavam prejuízo à saúde, o Tribunal Federal de Recursos (TFR) liberou novamente o consumo, desde que fossem colocadas tarjas informando sobre a possibilidade de radiação.

Desde a sua chegada ao Brasil, a “carne de Chernobyl” só trouxe polêmica e confusão. Zero Hora, 8 de novembro de 1990

Sua venda foi proibida novamente pelo TFR na mesma semana, fato que foi estampado na capa de Zero Hora, um dos maiores veículos do Rio Grande do Sul à época. Apesar disso, uma fala dessa edição chama a atenção para o fato de que as carnes já vinham sendo consumidas ao longo dos últimos anos. Juan Pio Germano, superintendente da Cobal, afirmava: “Pra mim esta carne pode ser comercializada, porque se tivesse que fazer mal já teria feito: em 1986 nós vendemos 12 mil toneladas na Grande Porto Alegre.”

Iniciava-se ali uma polêmica que duraria mais de seis anos e que envolveria diversos esforços e muitas testagens para atestar sua qualidade ou possível radioatividade. Enquanto isso, as carnes permaneceram armazenadas na Cibrazem por um longo tempo.

Depois de dois anos de impasse, em 1990, a carne “radioativa” foi liberada pelo Tribunal Regional Federal (TRF), mas sem autorização para consumo antes de novas análises, devido ao longo tempo de armazenamento. A decisão causou revolta na população, que chegou a propor um churrasco de “carne radioativa” para os responsáveis pela liberação. Independentemente do resultado, a carne teria de ser vendida para o mercado externo, podendo servir apenas para industrialização.

Recortes do jornal Zero Hora de 31 de outubro de 1990 , 16 de novembro de 1990 e 11 de janeiro de 1991 (CDI/RBS)

Enquanto isso, o alimento ia adquirindo um aspecto marrom e desidratado a cada ano que passava – a média para que uma carne permaneça congelada em bom estado é de no máximo 12 meses. Além de ter de correr contra o tempo a fim de evitar uma possível perda do produto, o Estado também arcava com despesas exorbitantes para armazená-lo nos freezers da Cibrazem.

As análises feitas então pelo Ministério da Agricultura em 1991, para atestar se o produto ainda estava em condições de ser consumido, não constataram presença de elementos radioativos, e apenas uma “pequena parte” do produto não estava em condições de uso devido à “má conservação”.

Mesmo os alimentos estando contaminados, a radioatividade em níveis acima do limite estipulado não foi comprovada nos estudos realizados. Diversos documentos, confidenciais à época e hoje disponíveis no Arquivo Nacional, atestam que os produtos não foram expostos à radiação em níveis acima do padrão – nem a carne, nem o leite.

Os laudos produzidos sobre a carne bovina informam que o material coletado não apresentava “contaminação radioativa proveniente do acidente de Chernobyl”. Assim, sob o aspecto radiológico, concluíam que “as carnes analisadas eram próprias para o consumo humano.” Já a carne suína, armazenada no mesmo local, apresentava traços de Césio-137 próximos do limite de detecção.

O laudo técnico sobre o leite em pó, expedido em 25 de agosto de 1986 pelo CNEN, comprova que o alimento apresentava contaminação por elementos radioativos artificiais em valores que representavam 30% da atividade máxima permissível. O mesmo documento atesta que a atividade de Césio-137 era mil vezes superior à normalmente encontrada no país e no hemisfério norte durante os últimos anos. Nas amostras nacionais, até aquele momento, não havia sido detectado Césio-134 em atividade mensurável (a ocorrência dos dois elementos, como viria a atestar outro documento do governo, podia ser um indicativo da radiação proveniente de Chernobyl). Mesmo com as descrições feitas no dossiê, os técnicos recomendavam o seu consumo. “Portanto […], o leite em pó é apropriado para o consumo humano”, informa o laudo.

Após o episódio do leite, o padrão de radioatividade aceitável foi determinado por um parecer do grupo técnico designado pelo governo, adotando os níveis máximos de contaminação radioativa para alimentos importados estabelecidos pelo Mercado Comum Europeu, de 3.700 Bequeréis por quilograma de leite em pó e 600 Bequeréis por quilograma de qualquer outro produto – o que permitiu a liberação tanto do leite quanto da carne.

Documentos confidenciais do governo atestam que os produtos não foram expostos à radiação em níveis acima do padrão (Fonte: Arquivo Nacional)

Além disso, como apontam os documentos confidenciais do governo, dois professores tiveram suas opiniões publicadas na edição de 14 de outubro de 1987 de Zero Hora. Seu parecer era de que os índices de radiação encontrados no leite eram seguros e estavam abaixo do nível aceitável. Mas o dossiê acrescenta: “Todavia, o professor Mundt chamou a atenção para o fato de que, para o aparecimento de doenças como o câncer ou de defeitos genéticos, não é possível o estabelecimento de um limite mínimo de tolerância à radiação.”

O destino da carne foi, enfim, a venda em um primeiro leilão em 1992, que fracassou. Quando finalmente foi vendida, pelo preço de Cr$ 3,9 bilhões, ainda gerou um prejuízo de mais de Cr$ 14 bilhões (que hoje equivaleriam a R$ 5.090.912,80) – o custo para estocá-la estava estimado em Cr$ 100 milhões por mês, gerando um total de Cr$ 6,8 bilhões ao longo dos seis anos que permaneceu guardada.

A carne francesa, uma das primeiras a serem importadas, realmente não deu churrasco, como era o temor inicial. O episódio, apesar de ter sido esquecido por muitos brasileiros, foi documentado na música Carne Francesa Não Dá Churrasco, do grupo gauchesco Os 3 Xirus, em 1987. Na letra, os gaudérios remetem à polêmica da radioatividade, pedindo “perdão” ao então presidente José Sarney e Dilson Funaro, ministro da Fazenda e responsável pela criação do Plano Cruzado, pois preferiam pagar mais caro a comer a carne importada. Em determinada estrofe, o receio da radiação fica ainda mais visível:

Quando botei a francesa no espeto

Escorreu um caldo preto e apagou o fogo meu

Pensei comigo, mas que carne mais à toa

No espeto não é boa, muito menos pra panela

Trecho de música do grupo os 3 xirus

Mas a realidade de contaminação por carne radioativa no Rio Grande do Sul, por mais distante que pareça, de fato aconteceu. José Antônio Oliveira dos Santos era trabalhador da Cibrazem (hoje, Conab), em Canoas, no final dos anos 1980, e atuava na manutenção das câmaras frias que armazenavam cerca de 2,7 mil toneladas da carne classificada como radioativa. O ex-funcionário teve sua vida e saúde afetadas pela radiação do alimento contaminado.

Os problemas de saúde de Santos, que o levaram a um diagnóstico de contaminação por radiação, se iniciaram dois anos após a saída da empresa. De 1992 a 1999, o ex-funcionário precisou fazer tratamento para infertilidade, devido à baixa motilidade e quantidade de esperma. Em 2002, outro problema surgiu: Santos teve carcinoma papilífero de tireoide. Mas foi somente em 2012, quando teve um carcinoma no couro cabeludo, que percebeu que seus problemas de saúde poderiam estar relacionados à radioatividade.

“Com aquele câncer, comecei a me tratar com a Dra. Rosemeri Goldschimdt, oncologista. Comecei a pesquisar sobre Chernobyl, e encontrei a revista de 29 anos do TRF-4, onde encontrei os dados da carne armazenada na Cibrazem. A Dra. me auxiliou e fez uma relação entre os casos de Chernobyl com minhas enfermidades. Aí a ficha caiu”, relata. “Voltei no médico que me tratou para infertilidade, e ele confirmou que, se estive em contato com radiação, a reação do organismo seria matar as células jovens – ou seja, esperma. A Dra. Rosemeri me pediu exames dos pulmões, que apresentavam sinais de contaminação por exposição a elementos radioativos. Lembro que ela me perguntou se eu havia trabalhado com radioterapia.”

Santos conta que não sabia que as carnes eram contaminadas. “Falavam em contaminação, mas nunca admitiram nem nos deram nenhum equipamento de segurança”, relembra. As carnes eram armazenadas junto a outras consumidas pelos funcionários. “Recebíamos doações de frigoríficos, e estas carnes eram armazenadas juntas, portanto, se contaminavam.” O ex-funcionário acredita que a carne de Chernobyl, como chama, era também consumida pelos trabalhadores.

Ainda em 2012, decidiu ingressar com uma ação contra a empresa. Depois de seis anos, o ex-funcionário ganhou a causa, e a Conab foi obrigada a indenizá-lo em R$ 462 mil pelos danos causados pelo trabalho. A decisão judicial encerrou uma polêmica de mais de 30 anos, ao estipular que as carnes eram, de fato, radioativas. Apesar de existirem casos semelhantes, somente Santos ingressou com uma ação judicial. Os outros funcionários da empresa não quiseram se expor, e os ex-empregados não acreditavam que conseguiriam lutar contra o Estado.

De fato, segundo o advogado Germano Schwartz, o mais desafiador deste caso foi provar que seu cliente teve complicações de saúde como resultado da exposição à carne contaminada: “Havia uma ação civil pública que confirmava que a carne estava no armazém em que meu cliente trabalhava. A segunda questão era dizer se ele estava em contato com a carne, o que conseguimos provar pela descrição do trabalho feita pelos empregadores e por testemunhas. Faltava provar que as lesões cancerígenas derivaram desse contato. Com aprofundamento na literatura, vimos que havia uma sequência de cânceres em ordem determinada que ocorriam devido à exposição à radiação. Fizemos uma perícia médica e foi confirmado. Ele apresentou a mesma sequência de lesões cancerígenas”. 

Apesar de a empresa ter pago a indenização, Santos afirma que o valor não é nada comparado aos danos causados. “Jamais vai pagar a perda de saúde, a incerteza sobre a origem de tudo isso. Nada substitui ter uma vida saudável e sua integridade física cuidada.” Entre os problemas de saúde enfrentados por ele, estão infertilidade, câncer de tireoide, câncer epidermóide na cabeça e no rosto, vários cistos no couro cabeludo, um cisto grande entre as costelas do lado esquerdo, um nódulo no mediastino e a retirada de um pedaço do palato – e, por conta de tudo isso, depressão. Desde 2002, Santos precisa fazer reposição hormonal e, desde 2012, tratamento para depressão.

Em relação à sua saúde atualmente, afirma que é uma incógnita: “A meia vida do Césio-137 é de 37 anos. Pensando que minha contaminação foi de 1988 a 1990, mais 37 anos, tenho até 2027 uma mutação genética acontecendo dentro do meu organismo. Ninguém sabe o que ela pode causar.”

Em abril deste ano, Santos foi infectado pela COVID-19 ao retornar ao trabalho. Como sua maior debilidade sempre foi em relação aos pulmões, acredita que isso contribuiu para a sua hospitalização e perda de 50% da atividade pulmonar em quatro dias, necessitando de sete litros de oxigênio para respirar ao longo do tratamento.

* Reportagem produzida para a disciplina de Ciberjornalismo III da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ministrada por Marcelo Träsel. A versão original e completa pode ser conferida aqui.

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