Parêntese #213: Bom é agora
Bom mesmo era no passado? Muita gente diz, há muito tempo, que carnaval como no passado nunca mais se fez, e isso é um pretenso sinônimo de um presente ruim, decaído, errado. Bom era o tempo das marchinhas. Bom era a descida da Borges. Bom era a batucada mais lenta.
É fácil concordar com essa visão. Mas é fácil, entre outros motivos, porque o passado de quem pensa assim tinha mais afinidades com a energia do carnaval. A gente era jovem, e por isso aguentava bailes ou desfiles em posição desconfortável, bebendo sempre e saindo lindaço no dia seguinte. Bons tempos.
Mas espera um pouco e olha o que tem acontecido de bom e de muito bom hoje em dia. A recuperação, ou melhor, a invenção dos blocos privados para brincar pelas ruas – que sonho isso! A abertura para gêneros musicais bons para chacoalhar o esqueleto, para além do samba e da marcha-rancho – que beleza!
E viu o tanto de profundidade que algumas escolas de samba, em São Paulo e no Rio?
Na ex-terra da garoa, a Vai-Vai (nome maravilhoso para uma escola de samba, vamos combinar) saiu com um enredo que homenageava os 50 anos do hip-hop. Lá estava o Mano Brown, figura incontornável da cultura brasileira de nossa época. Uma das marcas do desfile foi trazer alegorias associando a PM com figuras demoníacas. Ocorre que não temos aqui a visão das classes confortáveis sobre o tema: é o ponto de vista da periferia usualmente tratada a pontapé ou coisa pior pela PM.
Tal foi o impacto disso – mistura de hip-hop com carnaval e retrato crítico agudo da PM paulista – que, para surpresa de ninguém, deputados bolsonaristas pediram ao governador que bloqueie as verbas prometidas para a escola.
No Rio, ao menos três escolas lidaram com alta literatura recente para compor seus enredos. Três livros nada óbvios, três livros com altíssima densidade crítica.
O Salgueiro levou A queda do céu, um livro nada menos que sensacional, escrito por um antropólogo, Bruce Albert, mas vocalizando o ponto de vista do Davi Kopenawa, líder indígena com quem Albert conviveu por mais de 30 anos até encontrar a dicção adequada para produzir o incomparável relato.
A Portela, outra tradicionalíssima escola, adaptou o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves – que, me disse um amigo, esgotou mais uma edição na hora mesmo em que a escola estava na avenida. Nele, a escritora recompõe, com pesquisa documental e imaginação, a vida de Luísa Mahin, depois Gama, mais de Luís Gama, um herói negro da luta contra a escravidão. Livro grande, que se lê com o ardor com que se acompanha uma boa série.
E a Grande Rio foi talvez mais inventiva ainda, ao tom ar Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, como base para o enredo. Este livro, meus senhores e minhas senhoras, é um feito de altíssimo valor: Mussa, escritor experimentado, encarou a tarefa de repor, reconstituir, renarrar um mito (quer dizer, uma história) tupinambá. O livro é de leitura mais lenta, mas é primoroso. Mussa escreve como se estivesse vocalizando um indígena a narrar essa versão do começo do mundo, e o faz a partir de uma pesquisa exaustiva e uma aguda sensibilidade.
E isso aos 40 anos do Sambódromo, obra dos nunca assaz louvados Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, mais o traço do Oscar Niemeyer, três figuras maiúsculas que nosso país já viu desfilar.
Vem aqui então e acompanha comigo no replay.
E no que vem na Parêntese de número 213!
Marcela Donini, editora-chefe da Matinal, colabora na edição de hoje com uma reportagem especial sobre as festas black de Porto Alegre. Evandro Machado Luciano escreve com humor sobre a civilização e sua falta de lógica. Marcelo Rubens Paiva é a indicação de leitura de Nubia Silveira. Juremir Machado da Silva reflete sobre as provas do golpe. E, para fechar com chave de ouro, Claudia Tajes desenrola o capítulo final da vida de Áurea. E aí? Como será que vai ficar esse casamento com o Larry?
Boa leitura!
Luís Augusto Fischer