Entrevista

Karine Bassi: Na tora

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Karine Bassi: Na tora (Arquivo pessoal)

Foi por email que a Karine Bassi foi entrevistada. Eu a conheço de ter lido seu romance Sob o caminho uma rajada de ventos – que dá a ver o cotidiano miúdo de uma mulher jovem em busca de uma vida digna e bonita, a partir de sua condição periférica. E sabia também de fama – ela é a editora da Editora Venas Abiertas, um exemplo de novidade positiva no campo da literatura no Brasil, uma editora dedicada a publicar gente de valor e com experiência na dura vida das periferias mas que não encontra espaço no mercado já estabelecido.

Foi na Venas Abiertas – nome que por certo enlaça sua vida com o nome do famoso livro de Eduardo Galeano, Las venas abiertas de America Latina – que o José Falero publicou seu Vila Sapo, o primeiro livro (leia a entrevista com ele aqui). Foi ali que muita gente boa entrou no mundo impresso, inclusive a nossa editora Nathallia Protazio e a Dalva Maria Soares (leia a entrevista com ela aqui). Não só não é pouco como é muito, muito importante saber dela, portanto.

Nas respostas que escreveu, a Karine usou o termo “na tora”, que foi levado ao título desta seção. Eu não entendi e perguntei a ela. Explicação: em Belo Horizonte se usa essa expressão para significar “na cara e na coragem”. Posso imaginar que é uma deriva da expressão “na cara de pau”, e aí alguém brincou e pôs “tora” no lugar de “pau”, e assim caminham as locuções expressivas da vida.

A editora merece uma visita, em busca de literatura que vale a pena. 

(Luís Augusto Fischer) 


Parêntese – Karine, vamos começar pelo fim: como está o teu esforço pela sobrevivência da editora Venas Abiertas?

Karine – A Venas Abiertas vem passando por um longo processo de instabilidade. Algo que já era previsto quando a editora foi idealizada. Algo que se intensificou com a pandemia e isolamento social devido ao covid-19. Do lado de cá, não tenho medido esforços para manter a editora funcionando, tudo isso porque acredito na sua importância como uma grande ferramenta de transformação social, pessoal e ideológica. Também tenho ido a diversos espaços de apresentações artísticas e montado uma banquinha com as obras dos autores que publicamos. E é um esforço muito grande, que tem sugado bastante as minhas forças, não vou mentir, já que é uma demanda na qual eu tenho me debruçado boas horas dos meus dias, bons dias da minha semana e boas semanas do meu mês.

P – Agora conta do começo: como foi o processo de criar a editora? Como ela se estruturou?

K – Eu escrevo desde que me entendo por gente. E me entendo por gente desde que viver na sociedade me doía. 13 pra 14 anos de idade. Escrever e publicar um livro era uma realidade muito distante, mas escrever sempre foi muito urgente pra mim, então quando eu saí do ensino médio, ali com meus dezoito anos, eu sabia que ter a oportunidade de publicar um livro significaria bastante pro que eu tava produzindo. E eu produzia demais. Acho que foi a época que eu mais escrevi na vida, sem brincadeira. Então foi o momento em que eu comecei a correr atrás de editoras que publicassem os meus textos, mas eu nunca tive nenhum retorno. Os anos passaram, pra ser mais exata, nove anos se passaram, foi o período em que eu esperava contato deles e que ao mesmo tempo tentava levantar uma grana pra pagar do meu bolso. Nunca consegui. Foi aí que eu comecei a pesquisar como fazia para editar um livro, quais ferramentas se usavam, o que tinha que ter numa obra, busquei contato de gráficas na internet e fiz meus corres. Em menos de um mês eu já estava com o meu primeiro livro pronto, completamente diagramado, formatado e revisado. Eu criei tudo pra ele, a capa, a identidade visual, fiz os registros, enfim. Eu percebi que dava certo. Comecei a vender o livro digital e fiz uma campanha no Catarse. Não consegui muita tiragem, mas consegui imprimir o livro e por ele no mundo. Dei vida a um trabalho. Daí adiante, ideologicamente eu entendi que a poderia abrir realmente um espaço popular de publicações independentes e marginalizadas, de pessoas à margem de um mercado editorial que ainda é muito segregador. Com a parceria de um coletivo literário de periferia do qual eu faço parte de 2013, a gente fez a primeira publicação da Editora já registrada certinho. Cada autor pagou um valor de 50 reais e o coletivo fortaleceu com outro valor. No final, cada autor recebeu 20 exemplares da antologia. Dali pra frente, fizemos a segunda publicação, que foi o livro do José Falero, o Vila Sapo, e em seguida outros livros foram surgindo, sempre nessa perspectiva de ocupação do meio e dar vez e voz a autores que não conseguiam pagar pela publicação e nem eram aceitos por outras editoras. Realmente deu certo. Hoje, temos mais de 200 autores publicados, entre antologias e livros solos. Todos os processos sempre foram colaborativos e sem fins lucrativos.

P –  O clima literário e cultural de BH tem a ver com a editora? Ajudou? Vocês têm interação local importante com escritores já estabelecidos, com instituições de pesquisa e publicação?

K – Nem! Aqui em Belo Horizonte a cena da literatura sempre teve suas cartas marcadas. São sempre as mesmas pessoas que são convidadas para estar no centro das atenções em eventos literários que são organizados por instituições e até pela própria secretaria de cultura. O máximo que acontece aqui são as cotas para autores negres e/ou periféricos, pra dizerem de um evento diverso e contemplativo, o que não acontece realmente. Só existimos e resistimos porque buscamos ocupar os espaços e ir entrando aos poucos com nossos trabalhos. Só resistimos porque construímos muitas ações literárias nas e para as periferias em que vivemos. Porque atuamos em nossos territórios e conseguimos de alguma forma nos fortalecer mutuamente. Mas, a depender de alguns grupos literários de BH, a gente nem é convidado para determinados espaços de literatura da cidade. Nossa conexão se ampliou bastante nos últimos tempos, como eu disse, a gente entra nas coisas que estão acontecendo bem na tora mesmo, chegamos montando banquinha, puxando sarau… Mas nossa relação é bem melhor com autores que também ainda não foram vistos e/ou acessados por esse grupo seleto de figuras carimbadas. São os jovens dos saraus e dos slams, das batalhas de rima e muitos das escolas que estamos inseridos, já que somos arte-educadores, educadores sociais e professores de escolas públicas.



P –  E no resto do Brasil, em outras cidades, como circula a produção da editora? O catálogo da Venas Abiertas tem gente de quantos estados brasileiros?

K – A nossa ligação com grupos de outras cidades e estados é muito boa. Como a editora atua no campo da circulação e distribuição de uma literatura muitas vezes sussurrada, silenciada em diversos espaços e sem oportunidades no grande mercado editorial, nossa conexão com territórios periféricos é muito maior, claro, mas também conseguimos articular com autores já conhecidos e renomados, que conhecem, compreendem e fortalecem a editora. Pessoas que acreditam na sua importância e na necessidade da existência deste espaço que acolhe e integra. E dessa conexão acontecem projetos que abrangem/abraçam pessoas de muitos estados. Atingimos todas as regiões do nosso país e só não temos autores publicados que residem no Amapá, Roraima e Rondônia.

P –  Como foi tua trajetória pessoal no mundo dos livros e da literatura? Como foi tua experiência escolar e tua história como leitora? Começa em casa? Na escola?

K – A minha experiência com a literatura começa primeiramente com a escrita, depois de um tempo é que vem a leitura. Porque eu não gostava de ler, nada, nada mesmo. Eu achava uma perda de tempo tirar das poucas horas que eu tinha no dia pra poder ficar de boa, alguns minutos pra ler uma história que nunca me contemplou. Porque não me estimulava e não me prendia. Os contos de fadas eram histórias de terror pra mim, porque sempre reforçavam o meu lugar, não o meu lugar físico, mas o meu lugar corpo. As princesas eram magras, eram padronizadas, eram submissas. Eu era gorda, negra, livre. Então eu evitava os livros. Eu gostava de ficar pra rua afora jogando bola com os meninos, soltando pipa com os meninos, brincando de bolinha de gude com os meninos. E foi aí que a escrita entrou na minha vida. Porque pelas minhas escolhas as pessoas começaram a imprimir opiniões massacrantes sobre mim. E eu não tinha pra quem correr, porra, minha mãe tava ali fazendo o corre dela pra dar conta de manter a gente, o pai vivia viajando pra trabalhar e só vinha em casa de três em três meses e eu precisava dar meus pulos. Então comecei a escrever sobre todos os sentimentos que batiam em mim, os que eram tristes, os alegres, os amores, afetos, amigos, as opressões, tudo! Tudo era motivo pra eu rabiscar alguma coisa. Aí, houve uma atividade na escola uma vez, em que tínhamos que elaborar uma historinha em quadrinhos. Foi quando eu escrevi meu primeiro conto. Eu nem sabia o que era um conto, não sabia da estrutura e nem da parte técnica. Mas eu elaborei um conto do meu jeito, marginal, sem métrica e nem estética pré-definida. Eu fiz o conto e ilustrei ele copiando alguns desenhos daqueles livros de inglês fininhos que tinha. Que eram azul e verde as capas. E eu ganhei o concurso na época. Aquilo abriu um espaço enorme pra eu conseguir enxergar a potência que tinha a escrita/literatura na minha vida. Depois disso, eu comecei a visitar a biblioteca mais vezes, porque eu queria ter contato com esse mundo, havia acendido, a coisa bateu. Os primeiros livros que li foram do Machado de Assis, depois passei a ler outros nomes, como Martha Medeiros, Drummond, Lispector. “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis” é a frase que consagrou Machado de Assis, o meu autor preferido da vida.

Eu nunca tive uma boa relação com a escola. Eu odiava a escola com todas as forças da minha alma. Pra mim a escola sempre foi um ambiente segregador e opressor. Nas minhas particularidades eu nunca fui compreendida e nem aceita, e isso fazia de mim uma pessoa agitada, matava aula dobrado, pulava o muro pra cair fora, dava trabalho pros professores, e a minha mãe era a mulher mais chamada na direção da escola. Demorou muito até eu entender que não era escola que eu odiava, o que eu não suportava era o que estava dado como modelo de ensino. Eu quis muito mudar aquilo.

P – E a tua formação de estudos: como foi? Continua sendo? Por que o estudo de Biologia?

K – Como eu não suportava o ambiente escolar, eu tinha muitas dificuldades com os estudos. Não gostava de estar na sala de aula e nem da forma como as coisas eram propostas. Tive muitas notas ruins, tomei uma bomba no primeiro ano do ensino médio. Foi no ensino médio também que aconteceu uma coisa que mudou tudo pra mim. Não só o meu olhar para a escola – de entender ela como um espaço vazio pra que o outro possa construir ou destruir –, mas também o meu olhar para as pessoas que compõem aquele ambiente, da tia da cantina ao diretor. A minha mãe vivia sendo chamada na escola, e na última vez que isso aconteceu ela saiu chorando, ela passou por mim no corredor do andar de cima, onde minha sala ficava, olhou no fundo dos meus olhos e me perguntou assim: “Por que só você me dá trabalho? Por que eu sou chamada aqui na escola só por conta de você e nunca por conta dos teus irmãos?” Aquela pergunta martelou demais na minha mente, não pelo objeto do questionamento, mas ver a minha mãe chorar me doeu pra caramba, me doeu porque eu lembrei de todos os processos que ela passou pra conseguir me colocar ali, do tanto que a gente andava até chegar na escola, do trajeto que fazíamos e de certa forma, como eu só reafirmava os olhares das pessoas pra mim de que eu nunca conseguiria. Naquele dia eu decidi dar uma oportunidade pra mim, pra escola e pros professores. Mas eu queria que aquele ambiente existisse diferente. Então eu queria me tornar educadora. Eu queria entrar lá

como professora e tornar aquele ambiente possível pra outros jovens como eu. Dois anos depois de ter saído do Ensino Médio, eu entrei na escola pra trabalhar como monitora de escola integrada. Depois de um tempo, em 2015 eu ingressei na faculdade, no curso de Biologia. É uma área que me cativa muito pela sua versatilidade. Eu posso ir pros caminhos que gosto, meio ambiente, políticas públicas e sustentabilidade, e posso ir também pra área laboratorial. Enfim, é um curso que me permite estar dentro da sala de aula e levar de forma dinâmica o conhecimento. Além de permitir que eu faça atividades relacionadas à disciplina e insira sempre a arte no meio.

P – Da tua experiência como editora e agitadora, conta algumas histórias, por favor, pra gente saber mais da tua história e do teu papel. Tu tens trabalho de atriz ainda?

K – Em 2013 eu conheci o Coletivoz, primeiro sarau de periferia de Belo Horizonte, sarau que surgiu em 2008 com referência na Cooperifa. Aqui, eu começo a minha trajetória como poeta da palavra falada. É onde me insiro no meio, com a oralidade, e é onde aprendo mais sobre o fazer cultural na cidade e sobre a importância dessas pequenas ocupações urbanas para circulação de uma arte potente, plural, acessível e pouco reconhecida. De lá pra cá, construí, por vezes de forma coletiva e por vezes de forma individual, alguns projetos artísticos, não só pensando na valorização, mas na oportunidade. Eu entendi que muito das coisas só não vingaram pra mim porque eu não tive acesso, e eu queria que pros meus, pros que tão vindo, seja diferente. Um dos primeiros eventos que eu organizei nem foi em BH, foi em Vitória, no Espírito Santo, onde eu morei do final de 2013 a 2015. Lá eu lancei na minha casa mesmo um sarau literário, que era pra levantar grana pra pagar o aluguel. Uma vez no mês ele acontecia, eu vendia uma cerveja e um caldo e os amigos iam pra gente compartilhar. Deu muito certo até eu voltar pra BH de novo, pra entrar na universidade. Aqui, eu conheci o movimento político Levante Popular da Juventude e junto a ele construí o Sarauvá, um sarau literário temático com o intuito de desconstruir preconceitos e oferecer o contato de jovens periféricos com a literatura marginal e com a luta de classe. Depois desse movimento eu fui passando por outros processos de formação, em que, além de produzir esses eventos, eu comecei a produzir os meus próprios trabalhos. Junto dos amigos Leandro Zere e Joi Gonçalves, a gente construiu a A|BORDA, uma produtora cultural que constrói projetos e eventos artísticos na cidade. E junto a eles e somando o Pie e o Fellipe Beluca a gente fundou a Cia de Teatro 5SÓ, onde a gente trabalha as poesias do Slam, do sarau e a performance construindo um novo caminho para a oralidade através de monólogos compartilhados. Por fim, um dos últimos projetos que construí é o Prêmio Maria Firmina de Literatura, um prêmio focado na produção apenas de autores negros nascidos ou naturalizados no Brasil. Desenvolver todos esses projetos faz com que eu me sinta viva, com que eu sinta esperança de que, um dia, a liberdade vai cantar pra minha quebrada.

P – E da tua obra: como tem sido a recepção dela? Foi no romance que tu encontraste um caminho seguro para te expressar, como se vê no Sob o caminho…, ou o conto funciona igualmente bem pra ti?

K – Infelizmente eu não consegui dar muita saída ao meu romance, ainda esbarrando na dificuldade de circulação dessa produção literária, embora tenha conseguido uma saída de 200 exemplares (entre vendas e doações). Os comentários que recebi sempre foram bem receptivos, pessoas que leram e que gostaram e comentaram sobre a linguagem usada, sobre as referências, pessoas aqui do meu bairro que disseram como foi legal poder conhecer ainda mais a região a partir da minha narrativa. Isso tudo foi e é muito importante para mim. Eu tenho um desejo de talvez em algum momento ter uma nova impressão, talvez por outra editora que consiga dar maior vazão ao livro. Pelas minhas limitações eu não consegui levar o livro pra outros lugares que eu gostaria. O romance me possibilitou falar de um lugar seguro, mas me trouxe também um olhar pro meu território que é completamente inclusivo, provocador e potente. Eu gosto da prosa porque me permite descrever mais, dar sentindo às letras a fim de deixá-las uma experiência cada vez mais próxima, sabe? De fazê-la palpável. Eu gosto de descrever as coisas, os lugares, os sentimentos, os sentidos, os cheiros das coisas. E escrever prosa me dá mais essa abertura. Então no romance ou nos contos eu consigo elaborar e trazer isso. Mas eu consigo escrever mais contos porque não tenho tempo pra escrever um outro romance, por exemplo, já que preciso dar conta da existência, então preciso me desdobrar em muitas. Os contos são mais curtos e eu consigo escrevê-lo nos espaços/buracos dos meus dias.

P – O que vem vindo por aí?


K – Por enquanto estamos no caminho de reestruturação. Assim que conseguirmos quitar todas as dívidas da Editora, iniciaremos o caminho de institucionalização da Editora como uma associação literária, cultural e educativa, a fim de dar sequência aos projetos que construímos através dessa integração das linguagens artísticas e culturais. O que queremos é seguir produzindo e permitindo que autores tenham seus livros publicados e que possam compartilhar suas obras com outras pessoas que precisam ter acesso a esse tipo de publicação literária.

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