Editorial | Revista Parêntese

Parêntese #207: Deus não joga

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Parêntese #207: Deus não joga Hokusai, A grande onda de Kanagawa, circa 1830

Não se trata da frase do Einstein – “Deus não joga dados com o universo”, ele disse, ou teria dito, a propósito da teoria quântica. Mas, sendo bem sincero, não sei se Einstein queria dizer que a tal teoria estava errada ou estava certa, ou se esse extraordinário personagem chamado Deus seria um vulgar apostador ou não.

Sim, eu sei da fama que cerca a relação dos físicos em geral e os cientistas em geral com o dito personagem: Deus, essa figura, não consegue saciar a dúvida sistemática que a ciência carrega consigo desde sempre, mas os que creem nele como uma entidade por assim dizer real insistem em duvidar da ciência, como se ela sempre estivesse devendo para a consciência dele, ou Dele, que tudo saberia antes de todos e de tudo.

Não; a frase que me veio aos lábios esses dias foi outra: “Deus não joga mas fiscaliza”. Sem deliberação, me peguei dizendo a frase em voz alta e rindo imediatamente das lembranças associadas a ela.

Era no tempo em que essa frase era associada a uma vingança, a uma reviravolta do destino. O cara tinha te roubado no jogo (o futebol de calçada, por exemplo), metido a mão na bola mas recusado reconhecer a falta, digamos; uns minutos transcorrem e pimba, esse mesmo cara se torna vítima de uma outra trapaça, uma diferente mentira. Nesta hora, o primeiro dos ofendidos dizia, vingado: “Deus não joga mas fiscaliza”. Esse magnífico personagem chamado Deus tinha tomado as providências adequadas para repor a justiça – não estava em campo, mas como fiscal exercia seus poderes.

Isso se passava no tempo em que algum conforto podia provir dos Céus, os metafóricos domínios da divindade. Era um tempo em que, confrontado com as múltiplas evidências da catástrofe climática em que já vivemos, dava pra esperar dele, ou Dele, ou dEle, as providências cabíveis e suficientes para livrar a nossa cara.

Esse tempo passou, creio que até para os que têm esse grande personagem como, digamos, uma verdade. Ou será que nem os crentes nEle conseguem mais ter Seu consolo?

Esses dias, celular na mão e rolando a tela infinitamente, num dos momentos de bobeira existencial que acometem a qualquer um, parei para olhar um desses filmetes: imagens de ondas varrendo uma cidade, uma vaga de água marrom descendo um morro e levando por diante carros e casas, ali adiante secas infinitas.

Certo, não era nada de novo, nada que a gente não tivesse já visto.

Mas o novo para mim foi a legenda e a voz em off: dizia que o tempo estava chegando, que aquilo tudo tinha sido previsto, que nada daquilo era acaso.

Mas era o quê, então? Eram sinais. Sinais dos tempos.  

Não terminei de ouvir a conversa, por medo de que coisas como aquela começassem a soterrar minha timeline, sob comando do algoritmo. Tudo indicava que o filmete ia me assegurar que a mim só restaria passar a pagar dízimo para um representante daquele imenso personagem chamado Deus.

Deus me livre.

Não é este o futuro que a Parêntese quer – nem o da destruição do planeta, que nós devemos combater enquanto tivermos forças, nem a entrega de nosso destino nas mãos desse personagem notável criado pela humanidade, Deus. É aqui mesmo, com a nossa razão e a nossa sensibilidade, que devemos atuar.

No miúdo da nossa nova edição, abrindo este flamante 2024, atuar retomando o folhetim da Claudia Tajes. A vida e a vida de Áurea chega em seu sexto capítulo com o casal da história indo parar no divã para resolver uma questão complexa.

Nosso parceiro de longa data, Jandiro Koch, começa uma nova série, sobre a perseguição da comunidade LGBTQIAPN+ durante a Ditadura Civil-Militar brasileira. No primeiro capítulo, o autor mergulha nos acervos da Divisão de Censura de Diversões Públicas, do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), investigando a censura nas artes e no jornalismo. 

Em Reciclagens, Antonio Villeroy relembra o protagonismo que Porto Alegre já teve em questões básicas como a coleta seletiva de lixo e chama atenção para a escolha que teremos que fazer este ano, no pleito municipal.

Este escriba mesmo segue sua incursão na história dos Estados Unidos e na sua décima sétima crônica escrita desde Princeton ele mergulha nas questões indígenas e nos horrores com que os povos nativos foram – e são – tratados, aqui e lá.

Bom ano novo!

Luís Augusto Fischer

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