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Maíra Freitas: corpo livre para cantar

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Maíra Freitas: corpo livre para cantar Foto: Mario Rocha

O horário das 9 horas da manhã de uma segunda-feira pode não parecer o mais agradável para conceder uma entrevista. Mas para uma mãe de duas filhas – uma delas, com apenas quatro meses de idade –, o dia já começou faz tempo. “Tô de pé desde as 6h30”, diz logo no início da conversa a pianista e cantora Maíra Freitas, que se apresenta na última noite (18/9) do festival Unimúsica – Forrobodó: Quando Elas Tocam.

A instrumentista vive a maratona dos primeiros meses de Zinga, que veio ao mundo em maio deste ano. “Foi uma loucura, angustiante. Queria que ela nascesse em casa, e com a pandemia, pensei: ‘Agora que vai nascer em casa mesmo. Não quero saber de hospital’”, conta a instrumentista, que também é mãe de Zambi, 2 anos.

“Estamos num isolamento bem forte. A gente sai uma vez por mês para levar a mais nova no médico”, conta, fazendo menção ao companheiro, Mario Rocha, que também tem trabalhado de casa no período de isolamento social.

Desde a primeira gravidez, a artista lida com a complexa gestão do tempo da maternidade – e com preconceitos. “Já ouvi de empresário: ‘Engravidou? Agora vai ficar cinco anos sem trabalhar’, ‘Ninguém contrata cantora mãe’”, lembra Freitas. E desaba: “Eu estou trabalhando desde que a minha filha tem um mês”.

A cantora conta que viu sua remuneração zerar nos primeiros meses de paralisação provocados pelo coronavírus. Na impossibilidade de fazer shows e de se reunir com outros músicos, a artista dedicou-se a projetos como a concepção da trilha sonora de Sementes: Mulheres Pretas no Poder, longa de Éthel Oliveira e Júlia Mariano que acompanha as campanhas de seis mulheres negras nas eleições de 2018.

A atuação diversificada de Freitas, que além de compor trilhas já lançou dois discos solo como pianista e cantora, é fruto de uma formação instrumental extensa e de sua trajetória na música de concerto. “Comecei a tocar piano com 7 anos, e sempre tive professores do meio erudito. Por muito tempo, minha ideia era ser uma pianista internacional, tocar em concertos. Segui todo o caminho tradicional”, conta Freitas, que estudou no Conservatório Brasileiro de Música e é bacharel em piano pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Piano e voz

A partir do final da formação universitária, Freitas se deu conta de que a música de concerto não supria sua necessidade criativa: “Fiquei com vontade de fazer arranjos da forma que eu quisesse. Começar as músicas de um jeito e terminar de outro”. A instrumentista começou a estudar choro e piano popular. A guinada rumo a outras linguagens ganhou força com apresentações como cantora, ainda sem a ambição de usar a voz em sua carreira artística. Certo dia, seu pai, ninguém menos que Martinho da Vila, a viu cantar e a convidou para uma participação no disco Poetas da Cidade (2010).

“A galera da Biscoito Fino pirou: ‘Você tem que fazer um disco cantando, a gente banca’. Pô, se eles bancam, até injeção na testa”, diverte-se a cantora, que lançou Maíra Freitas, em 2011, pelo selo Biscoito Fino, com participação do pai e produção de sua irmã. “A Mart’nália é 20 anos e dois dias mais velha que eu. Ela é aquela irmã mais velha que pega pela mão, fez muito isso no meu primeiro disco”, relembra a cantora, que completou 35 anos no dia 9 de setembro.

A insegurança das primeiras gravações logo ficou para trás. “Foi foda, porque eu gostei de cantar, não queria mais outra vida, e comecei a direcionar minha carreira para isso”, conta a artista, que identifica em seu álbum de estreia influências que vão de Martinho da Vila e Paulinho da Viola ao compositor Cristóvão Bastos.

Antes de gravar o segundo disco solo, entre outros projetos, Freitas cantou no DVD Duas Faces: Ao Vivo na Mangueira (2012), de Alcione; fez direção musical, arranjos, voz e piano ao lado de Mart’nália no disco Carnavalança (2013); e ainda atuou na direção musical – compondo a trilha sonora original – do espetáculo infantil Quero Ser Ziraldo, de 2015.

No mesmo ano, o álbum solo Piano e Batucada, lançado pela Biscoito Fino com patrocínio da plataforma Natura Musical, marcou um novo momento na vida da cantora: “Estava com 28 anos, saindo de casa, me descobrindo como mulher. Tem uma coisa feminina, feminista. Sou livre, deixa eu viver, deixa eu cantar o que eu quiser”. Em Êta, faixa que abre o disco, Freitas canta: Nem o Papa nem o capeta fará parar de te querer pegar.

E no clipe de Nua, a artista celebra seu corpo livre para cantar:

Mulheres no palco

Bem-humorada, Maíra Freitas destaca que Piano e Batucada, lançado em 2015, antecede produções mais recentes com discursos feministas: “Acho bem doido isso, Maíra visionária!”. Para além da brincadeira, a cantora conta que em 2019 decidiu criar o grupo Jazz das Minas, formado só por mulheres, que até antes da pandemia a acompanhava em shows.

“Sempre trabalhei com mais homens, agora tenho buscado mulheres. Se não são pretas, são sapatonas, são trans… Vamos fugir do padrão, é isso que a gente tem que fazer. Não só para privilegiar as minorias, mas porque é mais legal, é mais agradável, é melhor!”, defende a cantora, caindo na risada com sua sinceridade. “Já não aguentava piadas chatas, ser invisibilizada… E não sei qual é essa necessidade que os homens têm de parar ensaio pra comentar jogo do Flamengo”, completa.

A colaboração é a principal característica que a artista tem percebido nas trocas criativas entre mulheres. “Somos mais colaborativas, e isso enriquece o fazer musical. Geralmente no trabalho com homens tem a necessidade de ter um [engrossa a voz] líder! Que manda! Você faz isso, você faz aquilo!”, observa.

Onze Fitas

No início de junho de 2020, Maíra Freitas compartilhou em suas redes sociais um vídeo em que interpreta a canção Onze Fitas, escrita por Fátima Guedes e que já foi cantada por Elis Regina. Tocando piano, com a pequena Zinga junto ao peito, Freitas canta: Por engano, vingança ou cortesia/ Tava lá morto e posto, um desregrado/ Onze tiros fizeram a avaria/ E o morto já tava conformado.

Aos três minutos e cinco segundos, a cantora explica o que motivou a gravação do vídeo: “Semana passada, eu estava em casa amamentando minha filha, quando ouvi três tiros. Depois eu descobri que esses três tiros foram pra Matheus [Oliveira, 23 anos], mototáxi aqui da minha rua. Matheus era pai de um bebê de um mês e meio, que nem minha filha. Os policiais mataram Matheus numa blitz que volta e meia tem aqui perto de casa. Eu tenho medo de passar naquele blitz. Eu tô cansada de ter medo daquela blitz, eu tô cansada de ter medo dessa polícia escrota, assassina, desse estado genocida, desse estado irresponsável que mato preto a cada 23 minutos”.

A cantora aponta que abordar a barbárie do racismo estrutural de forma explícita é inevitável – e tão importante quanto, se faz necessário um olhar atento aos preconceitos velados. “Só tem uma mulher preta arrastada, um homem preto sufocado porque você tem os pequenos racismos do dia a dia”, reflete.

Em sua atuação, de forma mais particular, Maíra Freitas entende que tem a responsabilidade de mostrar possibilidades de existir e se expressar que descontruam padrões opressores: “Quando eu sou uma mulher negra que busca outra forma de estar enquanto artista, que não a forma mais midiática, da Globeleza, isso é um ato político. É importante dar a visibilidade de que eu existo”.

Confira a entrevista com a clarinetista Joana Queiroz, que também toca nesta sexta (18/9).

Leia o perfil da instrumentista Nina Fola, que se apresentou na primeira noite do festival (14/9).

Confira também a conversa com a cantora Maria Beraldo, uma das atrações da noite de terça (15/9).

Leia a entrevista com a compositora Léa Freire, que se apresentou na quarta (16/9).

Confira o perfil da pianista Bianca Gismonti, uma das atrações de quinta (17/9).

Para saber mais sobre a edição deste ano do festival, leia a reportagem da jornalista Ana Laura Freitas, uma das curadoras do evento.

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