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Bianca Gismonti desvela seus mares

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Bianca Gismonti desvela seus mares Foto: Daryan Dornelles

Nova Déli, 11 de março de 2020. Depois de apresentar o álbum Desvelando Mares e clássicos da música brasileira nas cidades de Jaipur, Bangalore e Calcutá, a pianista Bianca Gismonti fazia o último show de uma turnê pela Índia ao lado dos músicos Antonio Porto (baixo) e Julio Falavigna (bateria), parceiros do Bianca Gismonti Trio.

No mesmo dia, em Genebra, a Organização Mundial da Saúde anunciava que o novo coronavírus tinha se tornado uma pandemia, o que acabaria resultando no cancelamento da turnê de Gismonti pela Europa, prevista para as semanas seguintes. O retorno da pianista ao Brasil dava início a um período marcado por uma grande perda.

Rio de Janeiro, 6 de junho de 2020. “Hoje te vi adentrando o profundo solo de sua família e ali, inocentemente, quis te ofertar todas as partituras do mundo, para que você dormisse, para sempre, nos braços da música. Queria que você levasse tudo o que te representou e, para tal, precisaria ancorar o milagre de todos os planetas nascidos e, ainda, os na barriga da Criação. Em reza, silenciei, cantarolei baixinho a sua Sabiá e as lágrimas vieram. Sua grandeza era tamanha que se fez traduzida em apenas uma gota de amor. Seu nome, Dulce, era humildade”, escrevia Gismonti em uma rede social, compartilhando o luto pela morte de sua madrinha, a cantora e compositora Dulce Bressane, que partira dois dias antes, aos 90 anos, vitimada pela Covid-19.

Rio de Janeiro, 11 de setembro de 2020. Ao telefone, Gismonti reflete sobre o período de isolamento social, exatos seis meses depois do último show na Índia e pouco mais de três meses após o falecimento de sua madrinha. A pianista conta que a dor da perda tem sido amenizada pela imersão nos arquivos de Bressane, cuja biografia Gismonti faz questão de narrar em detalhes ao seu interlocutor.

“Ela tinha muito envolvimento artístico. Foi casada com Bené Nunes, pianista de Juscelino Kubitschek. A casa dela e do Bené era onde todos os artistas da Bossa Nova iam: Tom Jobim, Vinícius de Moraes, João Gilberto… Depois ela fez filmes com Dorival Caymmi e Ary Barroso, trabalhou com Radamés Gnattali. Nos arquivos dela, tem poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Mario Quintana…”, conta Gismonti, acrescentando que Bressane, aos 39 anos, separada do primeiro marido, viria a se relacionar com o compositor Egberto Gismonti. “Eles foram casados por seis anos, se separaram, mas sempre foram muito amigos, unha e carne”, completa a pianista, que é filha de Egberto e da atriz Rejane Medeiros.

“A Dulce nos trouxe muita vivacidade a vida inteira. Era muito lúcida, até o final, falava de tudo, ia a todos os shows. Continuo muito tocada por essa história porque, mais uma vez, ela continua nos surpreendendo com maravilhas, como esse acervo guardado de forma tão cuidadosa. É muito inspirador estar com esse material em mãos”, conta a afilhada.

A dedicação ao resgate da trajetória da madrinha tem sido favorecida pelo período de isolamento social. “Pela primeira vez, não voltei ao ritmo usual depois de uma turnê”, reflete Gismonti. A pianista explica que os períodos de viagem a trabalho possibilitam um afastamento em relação ao cotidiano que ela considera positivo – uma temporalidade suspensa que, devido à pandemia, persiste, e que ela está conseguindo cultivar, apesar das angústias do momento atual. “Como um rio agitado que de repente se acalma: os sedimentos vão pro fundo, e você consegue enxergar”.

Forrobodó

Convidada do Unimúsica 2020, festival que reúne 25 mulheres instrumentistas, Gismonti apresentará três músicas na noite de 17 de setembro: Pequena Du (homenagem à sua madrinha), Festa no Carmo e Forrobodó – música de Egberto Gismonti que tem o mesmo nome da série de concertos online promovida pela UFRGS, intitulada Forrobodó: Quando Elas Tocam.

A questão da visibilidade das mulheres no meio musical – que orienta a edição deste ano do Unimúsica – ganhou evidência para Bianca Gismonti nos últimos anos. A pianista classifica os debates e mobilizações recentes em torno do feminismo como “um tsunami que vem para destruir muitas coisas que precisam ser destruídas”.

“Quantos anos eu toquei em festivais com a Claudia Castelo Branco [pianista parceira de Gismonti no Duo Gisbranco] e éramos as duas únicas mulheres? No começo não percebia nem dava muita bola. Nos últimos anos tenho reparado e comentado isso com outras mulheres”, reflete a compositora. Ela acredita que suas referências familiares contribuíram para uma perspectiva de “leveza” em relação a esses debates. “Tive uma educação que não seguia muito os padrões de gênero e tive duas mulheres fortes, minhas duas mães [Rejane e Dulce], que lutaram pelos seus sonhos”, conta Gismonti.

Duo e trio

Nascida em 1982, no Rio de Janeiro, Bianca Gismonti começou a estudar piano e teoria musical aos 9 anos. Aos 15, já tocava ao lado do pai e do irmão, o violonista Alexandre Gismonti. Com 18 anos, ingressou no bacharelado em Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se formaria em piano. Em 2008, lançou seu primeiro disco, Duo Gisbranco, ao lado de Claudia Castelo Branco – que Gismonti considera “uma irmã” e com quem também gravaria os álbuns Flor de Abril (2011) e Pássaros (2018) e o DVD Duo Gisbranco Dez Anos (2016).

Em paralelo ao duo – que segue em atividade –, às aulas de piano que ministra e às e colaborações com outros artistas, Gismonti lançaria Sonhos de Nascimento (2013) – já ao lado de seu marido, o baterista Julio Falavigna, e do baixista Yuri Popoff – e consolidaria o formato trio com Falavigna e o baixista Antonio Porto, com quem grava Primeiro Céu (2015) e Desvelando Mares (2018).

Desde 2017, com a formação trio, Bianca apresenta o espetáculo Gismonti 70, uma homenagem aos 70 anos de seu pai – comemorados em 2018 – já gravada no estúdio húngaro Hunnia Records e com disco aguardando data de lançamento. A atuação simultânea com as músicas de Desvelando Mares – repleto de inspirações internacionais – e as composições de Egberto Gismonti são uma “junção de ir para dentro e para fora”, nas palavras de Bianca: “É uma mistura de ir pro mundo, desvelar mares, e ao mesmo tempo reconhecer a fonte primeira. A música do meu pai é como se fosse canção de ninar, e queria homenagear alguém que, além de meu pai, é também um pai musical para muita gente”.

Outro tempo necessário

Uma faceta menos conhecida da atuação múltipla de Bianca Gismonti é sua dedicação ao ioga. “Fiz a primeira aula em janeiro de 2007 no Centro Sivananda de Yoga Vedanta, no Rio de Janeiro. Saí tão impactada que entrei na primeira livraria e pedi: ‘Me dá um livro de ioga’ – aquela bem desinformada”, diverte-se. “Lembro até hoje que comecei a ler o livro andando na rua e fiquei impressionada. A filosofia vedanta encontrou uma fonte que já buscava uma morada”, recorda.

Pouco depois, Gismonti cursou uma formação avançada para se tornar professora de ioga, atividade que mantém até hoje quando está no Brasil. Em 2009, conheceu o gaúcho Julio Falavigna, músico que atualmente vive no Rio de Janeiro e que fundou a primeira sede do Centro Sivananda no Brasil, na rua Santo Antônio, em Porto Alegre. O encontro de Gismonti e Falavigna contribuiu para a reaproximação profissional do baterista com a música – após anos de envolvimento intenso com o ioga – e resultou na criação do Bianca Gismonti Trio.

O ioga também levou Gismonti à meditação, prática que ofereceu à pianista o hábito de “simplesmente observar, para então mudar, agir, ou não agir. Ser testemunha de sua vida, e não necessariamente atuante”. Sobre a relação desse estado de consciência com as experiências que ela tem cultivado em turnês e no período de isolamento social, marcadas pelo resgate de sua relação com a madrinha Dulce, Gismonti observa: “Esse tempo é muito necessário para nos enxergarmos – como indivíduos, sociedade, país, mundo – e de enxergarmos nossas mentes e emoções”.

Leia o perfil da instrumentista Nina Fola, que se apresentou na primeira noite do festival (14/9).

Confira também a conversa com a cantora Maria Beraldo, uma das atrações da noite de terça (15/9).

Leia a entrevista com a compositora Léa Freire, que se apresentou na quarta (16/9).

Confira a entrevista com a clarinetista Joana Queiroz, que toca na sexta (18/9).

Para saber mais sobre a edição deste ano do festival, leia a reportagem da jornalista Ana Laura Freitas, uma das curadoras do evento.

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