Três Marias celebram 10 anos de timbres plurais em “Não Se Cala”
Bumba meu boi, coco, forró. Jongo, samba e ijexá. Alfaia, rabeca, sopapo. Caxambu, agê e ganzá. A pluralidade dos ritmos e instrumentos das Três Marias soma-se às vozes de Dessa Ferreira, Gutcha Ramil, Pâmela Amaro, Tamiris Duarte e Thayan Martins nas 19 faixas do álbum Não Se Cala, lançado no último domingo (10/9).
Ao longo de 1h13min, o quinteto apresenta o itinerário musical diverso que percorre desde 2013, reverenciando mestres e exibindo a potência de suas composições autorais. Concebido desde 2018 e gravado praticamente todo ao vivo no estúdio Pedra Redonda – liderado por Wagner Lagemann –, o álbum foi viabilizado por financiamento coletivo e tem produção musical de Guilherme Ceron em parceria com as Três Marias.
“É um disco que demandou muito cuidado em relação às sonoridades, por serem instrumentos e ritmos incomuns”, conta Pâmela. “Não usamos metrônomo em nenhuma música. Buscamos essa organicidade que as tradições ensinam pra gente – o que é algo decolonial, inclusive, ao optarmos pela pulsação da vida que a música traz”, complementa Dessa.
Mais de 20 artistas participam de Não Se Cala, incluindo nomes como Kika Brandão – integrante da primeira formação do grupo –, Diih Neques, Dona Conceição, Clarissa Ferreira, Nina Fola, Neuro Junior e Paola Kirst, aos quais se unem seis mestras e mestres do grupo: Adiel Luna (PE), Ìdòwú Akínrúlí (Nigéria), Loua Pacom Oulai (Costa do Marfim), Martinha do Coco (PE/DF), Paraquedas (RS) e Tião Carvalho (MA/SP).
“Além de ser um registro da nossa potência enquanto cinco mulheres que tocam juntas, com uma sintonia inexplicável, também é a construção coletiva de um espaço de convivência, com relações muito afetivas e poderosas de troca e aprendizado mútuo”, observa Gutcha, que atualmente vive em Macapá, ressaltando o interesse do grupo em se envolver com diferentes tradições musicais.
“Não é uma pesquisa estéril, pelo contrário. A gente se senta com as pessoas pra tomar café, brinca, ajuda a construir algo no quintal, suja os pés no barro… Isso nos transforma ao longo da nossa caminhada como instrumentistas, pessoas e ativistas”, completa.
O álbum começa com o peso de Mariê Mariô agradecendo aos guerreiros e guerreiras da cultura popular. Yagô Laroiê, composta pelo mestre Paraquedas, vem na sequência, antecedendo o cavaquinho de Pâmela e a homenagem à ancestralidade africana de Banto-Yorubá, que tem letra do sambista Mamau de Castro.
Em Santo Festeiro, as Três Marias trazem o bumba meu boi, com participação do mestre Tião Carvalho – relembre a entrevista sobre o clipe, que tem miniaturas produzidas por Thayan Martins e animações 3D de Tomás Piccinini.
Em Recado e Homem Foguete, as Três Marias criticam o machismo – Eu não aguento ter que ser donzela/ tentar ser sempre educada e me recatar/ – e comportamentos masculinos tóxicos: Se esse macho foguete chegar do meu lado/ se for tarado vai ter confusão/ Eu sou capoeira, tenho a minha turma/ Não queira que eu durma com o meu facão.
Não Se Cala segue intercalando ritmos e vozes ao longo das 13 faixas seguintes, em músicas como Pedido a Osun, Tartaruga, Ladainha / Dona Maria Como Vai Você?, Fuxiqueira, Toque de Beth e No Agora. A faixa-título encerra o álbum com os versos: Mandaram meu tambor se calar/ Povo negro não pode deixar a festa acabar.
Intimidade criativa
Para Dessa Ferreira, o álbum Não Se Cala consolida o papel crescente das composições autorais do grupo ao longo dos últimos anos, após um período inicial marcado por releituras: “As Três Marias é um espaço em que nos sentimos à vontade para trazermos nossas composições, em um contexto em que as mulheres ainda são pouco vistas como compositoras”.
“Estudamos musicalidades, o que nos faz estudar o Brasil, nós mesmas e de onde vem nossa diversidade enquanto pessoas negras, LGBT, indígenas, diversas, além de musicistas e artistas com outras possibilidades de atuação”, completa a cantora, instrumentista e produtora cultural, que hoje vive em São Paulo.
Ainda tocada pelo show de lançamento de Não Se Cala, realizado no dia 10 de setembro, no Afro-Sul Odomodê, Pamela Amaro ressalta a química do grupo dentro e fora dos palcos: “O mais bonito de todo esse processo é o nível de intimidade que conquistamos”.
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