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Unimúsica 2022 | Tiganá Santana estreia em Porto Alegre

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Unimúsica 2022 | Tiganá Santana estreia em Porto Alegre Foto: José de Holanda

O compositor Tiganá Santana faz seu primeiro show em Porto Alegre nesta sexta-feira (18/11), às 20h, no Salão de Atos da UFRGS, integrando a programação do festival Unimúsica, que em 2022 dedica-se ao papel estruturante da diáspora africana na música brasileira. O cantor baiano apresentará composições de um itinerário artístico-intelectual em que línguas, culturas e sonoridades desenham uma cartografia complexa, habitada pelas frequências graves e delicadas de sua voz.

Ainda criança, Tiganá teve seu primeiro contato com idiomas africanos enquanto acompanhava a mãe – a atriz, militante negra e secretária de Cultura da Bahia, Arany Santana – em aulas do Centro de Estudos Afro-orientais, vinculado à Universidade Federal da Bahia. “Minha mãe não tinha com quem me deixar. Eu era a única criança no curso. Remeto a esse período minha primeira atenção aos vocábulos de origem africana”, recorda o cantor, que atualmente leciona no Centro e no bacharelado em Artes da UFBA.

Tiganá seguiu estudando línguas africanas e europeias, incentivado por Arany, que vislumbrava uma carreira diplomática para o filho. “Me interesso muito por outros modos de pensar e enunciar repertórios corporais. Para além disso, minha mãe pensava que eu poderia ser diplomata pelo fato de o Brasil não ter representação oficial no exterior que espelhe a maioria da população brasileira”, explica o compositor.

Embora tenha visitado Brasília e o Instituto Rio Branco quando adolescente, a vida diplomática – “não necessariamente comprometida com a profundidade cultural e existencial do Brasil” – não atraiu Tiganá, que acabou seguindo os caminhos sonoros que trilhava desde os 11 anos, quando sua mãe lhe deu o primeiro violão. O estudo do instrumento começou de fato aos 14 anos, nas aulas do professor Alberto Batinga, que acompanhou a escrita poética de Tiganá, cultivada desde os 9 anos, se transformar em composições. Aos poucos, a inflexão musical foi abarcando os conhecimentos linguísticos do artista: “A prática de letrista sem dúvida passou pelas línguas que me interessam. Havia alguma coisa a ser pensada melódica, rítmica e harmonicamente”.

Foto: José de Holanda

Graduado em Filosofia pela UFBA, Tiganá lançou Maçalê (2010), com canções nos idiomas kikongo e kimbundo e faixas com diversos instrumentos – atabaque, sax, flauta, agogô, berimbau, violão, entre outros. O trabalho é considerado o primeiro álbum a reunir composições de um brasileiro em línguas do continente africano – destaque para o samba diaspórico Mpangi Mbote, com sons de pandeiro e apito mesclando-se aos versos.

Produzido pelo percussionista sueco Sebastian Notini e cantado em cinco idiomas (português, inglês, espanhol, kikongo e kimbundo), o segundo álbum de Tiganá, The Invention of Colour (2013), foi praticamente todo gravado na Suécia com recursos estatais do país escandinavo – em certa medida, situando o cantor no cenário internacional que a mãe vislumbrava. Segundo o site World Charts Europe, o álbum chegou a ser o oitavo mais baixado na Europa. The Invention of Colour tem entre suas faixas a bela La Leyenda de los Eslabones, com a participação da cantora caboverdiana Mayra Andrade.

The Invention of Colour traz o som marcante do violão-tambor, uma criação de Tiganá. “O violão-tambor se situa mais ou menos na mesma região de frequências da minha voz. Inspirado pelas texturas graves dos tambores, fui chegando a essa configuração: uma corda a menos, com uma corda grave embaixo, trazendo uma dinâmica de perguntas e respostas”, explica o músico, aludindo ao caráter percussivo que dá nome ao instrumento.

Com bolsa da UNESCO-Aschberg, Tiganá participou de uma residência artística de cinco meses em Toubab Dialaw, no Senegal. Ao final do período, contemplado por um edital da Petrobras, aproveitou a estada na África Ocidental para gravar o álbum Tempo & Magma (2015). “Até hoje essa experiência ressoa em mim. Cheguei lá sem conhecer ninguém e fui estabelecendo minha relação com músicos de Senegal, Guiné-Conacri e Mali”, destaca o compositor, que contou, em gravações realizadas no Brasil, com as participações da cantora Céu e da escritora e sacerdotisa Mãe Stella de Oxossi.

Lançado em 2020, Vida-Código marca o retorno de Tiganá às gravações em Salvador – financiado pelo Departamento de Cultura da Suécia. O trabalho reúne canções com a presença de instrumentos eletrônicos e acústicos, com faixas em português, francês, kikongo e espanhol. As participações incluem Alzira E, Leonardo Mendes e Arany Santana, que canta em Ilê, Se Eu Não Gostasse de Você, do bloco afro Ilê Aiyê.

No mesmo ano, foi lançado Milagres, que revisita Milagre dos Peixes (1973), de Milton Nascimento. O álbum nasceu de uma participação de Tiganá no No Music Festival (2017), em Berlim, que apresentou produções artísticas impactadas por regimes autoritários – entre as quais, o disco de Milton, que teve letras censuradas pelo regime militar. A apresentação na Haus der Kulturen der Welt, na capital alemã, encantou o diretor do selo Martin Hossback, que logo após o show convidou Tiganá para gravar a homenagem.

Nesta sexta-feira (18/11), Tiganá apresenta nas plataformas digitais o single Bloco Novo, parceria com o pianista cubano radicado em Barcelona Omar Sosa. A faixa é o primeiro lançamento de um álbum do selo Sesc Digital previsto para 2023.

Tradutor de sensibilidades

A trajetória de Tiganá engloba outra atuação marcante, que se conecta ao interesse por línguas estrangeiras e às suas composições em diferentes idiomas. Interessado em difundir os ensinamentos do pensador congolês Bunseki Fu-Kiau (1934-2013), Tiganá começara a traduzir para o português – empreitada inédita –, por conta própria, o livro African Cosmology of the Bantu-kongo: Principles of Life and Living, lançado originalmente em 1980 pelo autor africano com o título The African Book Without Title. Em 2013, após uma conversa com o amigo Álvaro Faleiros, professor do Programa de Estudos da Tradução da Universidade de São Paulo, o músico foi encorajado a transformar o exercício tradutório em mestrado acadêmico.

A originalidade da iniciativa era tamanha que a prova de qualificação do projeto aprovou Tiganá diretamente para o doutorado do Departamento de Letras Modernas da USP. Em 2019, o pesquisador defendeu a tese “A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil”, na qual afirma que a obra traduzida “é a afirmação de Fu-Kiau de que há camadas profundas de pensamento e linguagens no continente africano”. Ao longo desse percurso, Tiganá recebeu da educadora Makota Valdina (1943-1919) – referência brasileira nos estudos de Fu-Kiau – centenas de páginas de manuscritos do pensador, que seguem sendo objeto de estudo do cantor, compositor, tradutor e pesquisador baiano.

Para Tiganá, a composição e a tradução fazem parte de uma mesma atuação repleta de porosidades: “Antes da prática tradutória interlinguística, existe a prática que diz respeito a traduzir em arte – e nisso que o Ocidente chama de música – um conjunto de experiências não necessariamente revestidas do que se reconhece como arte. Essa é uma primeira dimensão tradutória”.

“Tento transitar entre essas diversas possibilidades de línguas, de modos de pensar e agir no mundo, levando uma coisa de lá para cá. Traduzir é isso, a rigor, levar algo de um lugar para o outro”, completa o compositor-tradutor.

Unimúsica 2022: rasuras transversais

Intitulado rasuras transversais, o Unimúsica 2022 será realizado de 17 a 20 de novembro em shows no Salão de Atos da UFRGS, apresentações ao ar livre e encontros com os artistas convidados. Além de Tiganá Santana, o festival reúne Amaro Freitas – relembre a entrevista –, Bambas da Orgia, Coletivo Turmalina, Cristal, Imperadores do Samba, Jup do Bairro e Zudizillaconfira a programação.

Realizado desde 1981 pela UFRGS, a edição deste ano do Unimúsica tem curadoria assinada pelas musicistas e pesquisadoras Nina Fola e Rosa Couto, pelo professor e astrofísico Alan Brito, pelos jornalistas Ana Laura Freitas e GG Albuquerque, pela produtora cultural Lígia Petrucci e pela antropóloga Santa Júlia da Silva.

rasuras transversais é uma proposta que naturaliza uma programação composta por 100% de artistas negres e que tem por objetivo demonstrar que a influência, a participação e a construção negra na música brasileira é estruturante e não mais se dissocia do que se produz como música no Brasil. Realizar um evento dessa monta é de suma importância nesse momento político e social”, afirma Nina Fola – relembre o perfil da artista.

“No ano em que a lei de cotas completa 10 anos, e as políticas afirmativas na UFRGS, 15 anos, nos pareceu especialmente pertinente observar como o pensamento sobre música tem se transformado na universidade, acompanhando esse processo e buscando revisar uma lógica eurocentrada de valor em música, que sempre prevaleceu nesse ambiente e que é fruto do racismo estrutural em nosso país”, destaca a jornalista Ana Laura Freitas.

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