Foto: Arquivo Pessoal

#180 | JULHO DE 2023

“Precisava de um tempo só para mim. Era uma tentativa de segurar as horas que me fogem, enquanto dedico meu olhar aos outros.”
Foto: Arquivo Pessoal

Parece um tempão, mas foi há algumas semanas. Sexta-feira. Deixei meu filho na escola, voltei para casa. Separei duas mudas de roupa, dois livros inacabados, cuia, bomba e térmica para o chimarrão. Tênis nos pés, chinelo na mochila. Fones de ouvido, computador, celular e carregador. Em 20 minutos eu estava com tudo o que precisava.

Coloquei no carro, que já estava com o tanque cheio, desativei as notificações do celular e abri um sorriso. Seriam pelo menos cinco horas sozinha, sem interrupções, ouvindo as músicas que eu bem entendesse, no volume que eu quisesse. Eu ouviria todas da Ângela Ro Ro para chorar bastante, passaria por Rita, Gal e Cazuza. Depois pularia para um reggae para lembrar que eu estava indo para o litoral. Escutaria aquelas da adolescência, que só tenho coragem de ouvir sozinha. Daria tempo para tudo. E quando cansasse de cantar, poderia fazer maratona de podcasts, ficar em dia com a política da semana, saber mais sobre Darwin e as histórias aleatórias da Rádio Novelo. Se o final de semana não fosse bom, só a viagem até lá já teria valido.

Cheguei na Guarda do Embaú às 19h. Chovia e minha garganta doía de tanto que cantei. Aluguei uma pequena casa pelo Airbnb, toda envidraçada, cercada por mato e de frente para o Rio da Madre.

A proprietária me escreveu avisando que estaria tudo aberto, chave na porta. Era só ocupar. Estacionei o carro, larguei as coisas, fechei a casa e fui ao mercado. O plano era comprar os mantimentos e voltar o quanto antes. Tomar banho, comer, beber um vinho e dormir. Amanhã seria um novo dia. 

Tenho muitas lembranças da Guarda, de memórias e de sentimentos. A mais forte era da última vez que estive por lá. Eu chegando em casa depois de fazer a trilha até a Pinheira e recebendo a notícia de que um acidente de carro havia levado a vida de três primas minhas. Era janeiro de 2011, eu chorei a madrugada toda. Não consegui chegar a tempo do velório, em Porto Alegre.

Doze anos depois, eu estava lá novamente, no final de semana que antecede o feriado de Finados. Precisava de um tempo só para mim. Era uma tentativa de segurar as horas que me fogem, enquanto dedico meu olhar aos outros. Também estava vivendo o encerramento de alguns ciclos e sentia uma espécie de luto. Precisava ritualizar. Coincidência ou não, os livros que eu carregava – Dias de se fazer silêncio, Camila Maccari, e As pequenas chances, Natalia Timerman – tratam da morte.

Algo aconteceu comigo naqueles dias de lua cheia e eclipse lunar. Fui na sexta para voltar domingo, mas acabei estendendo até quarta. E se pudesse ficava mais tempo. Choveu quase todos os dias. Evitei o celular, montei um quebra-cabeça de mil peças, trabalhei um pouco, escrevi quase nada, acordei com o canto dos pássaros, contemplei a fumaça sair da chaleira e o brilho da luz entrando pela janela da cozinha. Evitei industrializados, me alimentei com aquilo que a terra dá. Sentada no chão da varanda, observei o som que as gotas da chuva fazem ao tocar a poça d’água que se formava na grama. Fiquei amiga de um cachorro na praia que me acompanhou até em casa, observei a família de cutias que passava correndo de manhã cedo pelo pátio, tremi de medo quando uma mariposa-bruxa invadiu meu quarto e fiquei tentando encontrar significado para aquilo. Li que elas estão associadas à crença sobre a morte, indicando mau agouro ou a visita de algum ente querido que veio se despedir.

No domingo, resolvi refazer a trilha para a Pinheira. Menosprezei a travessia. Fui de chinelo, com uma bolsa de pano lotada: fone de ouvido, térmica, cuia, erva-mate, canga, protetor solar e até um incenso. Saí a caminhar sozinha, no sol forte do meio dia. Pensei que lembraria com facilidade do caminho, mas logo vi que o tempo nos faz esquecer de algumas coisas. Errei o trajeto, me perdi. Caminhei bem mais que deveria. Subi pedras que não precisava, caí uns tombos, me embarrei toda, corri de uns quero-queros escandalosos, pisei em bosta de vaca. Mas cheguei.

No fim, achei simbólico tudo aquilo. Às vésperas do feriado de Finados, pensei sobre o tempo e sobre a morte. Fiz associações, escrevi para as minhas amigas contando. Foi importante revisitar aquele percurso anos depois, sozinha. Às vezes precisamos nos perder para nos encontrar – e todo aquele clichê faz sentido. O tempo passa diferente quando estamos sós. Sem companhia, não tem risadas de criança, o calor dos abraços, nem a pressa do coletivo. O tempo, ele foi silencioso, longo e um pouco melancólico, mas foi todo meu.


Raphaela Donaduce Flores é jornalista, especialista em comunicação empresarial e gestão cultural. Em 2011, fundou a Dona Flor Comunicação (www.donaflorcomunicacao.com.br), agência que presta serviços de assessoria de imprensa e conteúdo para diversos segmentos.

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